domingo, 22 de julho de 2018

Aristóteles VIDA E OBRA - PARTE 3

Em 336 a.C. Filipe da Macedônia foi assassinado, e Alexandre, então com dezesseis anos, ocupou o trono. Depois de prontamente executar todos os pretendentes e fazer algumas campanhas blitzkrieg preliminares através da Macedônia e da Albânia, cruzar a Bulgária e atravessar o Danúbio, descendo depois pela Grécia (reduzindo, en route, Tebas a uma ruína fumegante), Alexandre partiu então para sua campanha de conquista do mundo conhecido.

Na prática, isso incluía o norte da África, a Ásia até Tachkent e o norte da Índia. Felizmente, as lições de geografia de Aristóteles não mencionavam a China, cuja existência permanecia ignorada pelo Ocidente até então. Agora que Alexandre mantinha a mente ocupada com outros assuntos, a presença de Aristóteles não era mais necessária, sendo-lhe permitido retornar a Estagira. Porém, antes de deixar Pela, Aristóteles recomendou a Alexandre seu primo Calístenes para o cargo de intelectual da corte. Esse ato de generosidade lhe seria fatal.

Calístenes era um tanto falastrão, e Aristóteles, antes de partir, advertiu-o sobre os riscos de falar demais na corte. Quando Alexandre partiu em sua campanha de conquista do mundo, levou Calístenes como seu historiador oficial. Mas enquanto abriam caminho através da Pérsia, Calístenes parece ter provocado contra si próprio uma acusação de traição, o que fez com que Alexandre o trancafiasse numa gaiola portátil. Calístenes seguia ao lado do exército, derretendo sob o calor do deserto, o corpo coberto de feridas e insetos repulsivos – até que Alexandre, não suportando mais presenciar tal cena, lançou-o aos leões. Mas, como todos os megalomaníacos bem-sucedidos, Alexandre tinha seu lado paranóico: culpou Aristóteles pela traição de Calístenes.

Diz-se que esteve a ponto de assinar sua execução, mas acabou esquecendo; em vez disso, partiu para conquistar a Índia. Depois de passar cinco anos em Estagira, Aristóteles retornou a Atenas. Em 339 a.C. Espeusipo morreu e o cargo de líder da Academia ficou novamente vago. Dessa vez o indicado a ocupá-lo foi Xenócrates, velho amigo de Aristóteles, tido como indivíduo de caráter convenientemente austero e digno, embora em certa ocasião tenha feito jus à coroa de ouro “por sua proeza etílica na Festa das Ânforas”. (Xenócrates morreria no cargo vinte anos mais tarde: certa noite, trôpego, caiu dentro de um tonel de água.)

Aristóteles irritou-se de tal forma por ter sido novamente preterido que decidiu fundar uma escola rival própria. Instalou-a num grande ginásio fora dos muros da cidade, ao pé do monte Licabeto. O ginásio ficava colado ao Templo de Apolo Lício (Apolo sob a forma de lobo): daí a escola de Aristóteles ter ficado conhecida como Liceu.

O nome resiste até hoje, mais adequadamente na palavra francesa lycée – embora a razão precisa para a grande escola aristotélica ser também celebrada em nomes de salões de dança e teatros não seja tão clara. O Liceu original de Aristóteles certamente ensinava uma ampla gama de assuntos, mas as danças de salão e a arte de representar não alcançariam status acadêmico pleno até o século XX, no centro-oeste americano.

O Liceu parecia-se muito mais com uma universidade moderna do que a Academia. De dez em dez dias, era eleito um novo líder para o conselho de estudantes; havia cursos independentes que competiam pelos alunos; e até mesmo tentativas ocasionais de instituir um calendário de atividades eram feitas.

O Liceu realizou pesquisas em diversas ciências, transmitindo aos alunos as descobertas feitas – ao passo que a Academia estava mais interessada em dar a seus alunos noções básicas de política e direito, a fim de que pudessem se tornar futuros governantes da cidade. O Liceu era o MIT (ou talvez o Instituto de Estudos Avançados) da época, enquanto a Academia se parecia mais com Universidade de Oxford do século XIX ou com a Sorbonne.

As diferenças entre o Liceu e a Academia ilustram de forma adequada as divergências entre as filosofias de Aristóteles e Platão. Enquanto Platão escrevia A República, Aristóteles preferia reunir cópias das constituições de todas as cidades-estados gregas e selecionar os melhores artigos de cada uma. O Liceu era a escola à qual as cidades-estados recorriam quando queriam redigir uma nova constituição. Ninguém tentou proclamar a República.

Infelizmente, o minucioso estudo de Aristóteles sobre política já fora transformado em algo quase supérfluo – por ninguém menos que seu pior aluno, Alexandre. A face do mundo se modificava para sempre: o novo império de Alexandre fazia chegar ao fim a era da cidade-estado, assim como hoje a união européia pode estar a ponto de determinar o final efetivo das nações independentes européias.

Nem Aristóteles nem qualquer um da galáxia de intelectuais reunidos nas escolas de Atenas parecem ter se dado conta dessa grande mudança histórica – omissão que se equipara à dos intelectuais do século XIX, de Marx a Nietzsche, ao deixar de prever a supremacia da América. Aristóteles dava suas aulas enquanto caminhava com os alunos, razão pela qual seus seguidores tornaram-se conhecidos pelo nome de peripatéticos (os que caminham para cima e para baixo).

No entanto, alguns afirmam que receberam esse nome porque o mestre dava suas aulas na galeria coberta do ginásio (conhecida como Peripatos). Atribui-se a Aristóteles a fundação da lógica (mais de 2.000 anos seriam necessários para que surgisse um lógico de seu quilate), além de ter sido um metafísico quase ao nível de Platão e ter superado seu mestre tanto em ética quanto em epistemologia.

(Apesar disso, no quesito originalidade é Platão quem prevalece. Aristóteles pode ter fornecido as respostas, mas foi Platão quem percebeu antes as questões básicas dignas de indagação.) Aristóteles, cujo feito mais significativo deu-se no campo da lógica, chegou a considerá-la o alicerce sobre o qual todo o conhecimento repousa. Platão intuíra que o conhecimento podia ser adquirido pela dialética (discussão, sob forma de conversa, mediante perguntas e respostas). Mas foi Aristóteles quem formalizou e desenvolveu esse


método com a descoberta do silogismo, o qual, segundo ele, mostrava que “quando certas coisas são afirmadas, pode-se demonstrar que alguma coisa que não a afirmada necessariamente se segue”. Por exemplo, se fizermos as duas afirmações seguintes:
Todos os humanos são mortais.
Todos os gregos são humanos.
podemos inferir que:

Todos os gregos são mortais.
O que é logicamente necessário e inegável.

Aristóteles chamou sua lógica de “analitika”, que significa “explicitadora”. Toda ciência ou campo de conhecimento tinha de surgir de um conjunto de princípios básicos ou axiomas. A partir destes, as verdades poderiam ser deduzidas através da lógica (ou explicitadas). Esses axiomas definiam um determinado campo temático, separando-o dos elementos irrelevantes ou incompatíveis. Biologia e poesia, por exemplo, partiam de premissas mutuamente excludentes. Dessa forma, os animais mitológicos não faziam parte da biologia e a biologia não precisava ser escrita sob a forma de poesia.

Esse enfoque lógico liberou campos inteiros de conhecimento, fornecendo-lhes potencial para descobrir conjuntos novos e completos de verdades. Seriam necessários dois milênios antes que essas definições se tornassem um ponto de estrangulamento, restringindo o desenvolvimento do conhecimento humano.

O pensamento de Aristóteles foi filosofia por muitos séculos adiante e na Idade Média chegou a ser considerado um evangelho, o que impediu que continuasse a se desenvolver. Esse mesmo pensamento pode ter construído o edifício intelectual do mundo medieval, mas mal se pode atribuir ao autor a responsabilidade por ele ter se tornado uma prisão.

O próprio Aristóteles jamais teria permitido isso. Suas obras são permeadas pelo tipo de inconsistência que mostra um espírito em permanente questionamento e evolução. Ele preferia investigar o funcionamento real do mundo, ao invés da mera especulação sobre sua natureza. Até mesmo seus erros são, com freqüência, expressos poeticamente – “o ódio é o sangue fervendo em torno do coração”, “o azul do olho vem do céu”. Num estilo tipicamente grego, viu a educação como o caminho pelo qual a humanidade poderia avançar, acreditando que um homem educado diferia do que não possuía educação “tanto quanto os mortos dos vivos”.

No entanto, o lugar que atribuía à educação não era revestido de um otimismo raso: “É um adorno na prosperidade e um refúgio na adversidade.” Ele pode até ter se tornado, no final de sua vida, um pouco pedante, mas há indicações de que tenha tido sua cota de sofrimento. Permaneceu professor durante toda a vida e nunca pleiteou cargo público, porém nenhum homem em toda a história humana jamais teve, e dificilmente terá, influência tão duradoura sobre o mundo – pelo menos até aparecer o monstro que aperte o botão nuclear.

Nisso tivemos sorte, pois Aristóteles parece ter sido um bom homem. Para ele o objetivo da humanidade era a conquista da felicidade, que ele definia como a concretização do melhor de que somos capazes. Mas o que é o melhor de que somos capazes? Na opinião de Aristóteles, a razão é a mais elevada faculdade do homem. Por isso mesmo, “o melhor (e o mais feliz) dos homens ocupa o máximo de seu tempo na mais pura atividade da razão, que é a teorização”. É uma visão demasiado professoral e inocente da felicidade: o hedonismo como uma conquista puramente teórica. Poucos no mundo real subscreveriam essa conclusão.

É discutível que Alexandre, o discípulo de Aristóteles, tenha buscado a concretização do melhor de que era capaz – infligindo sofrimento e morte a milhares sem conta ao longo do processo. No entanto, também se pode argumentar que Aristóteles tentou reprimir esses excessos morais com sua famosa doutrina de que a virtude está no meio.

Segundo essa doutrina, toda virtude se encontra no meio de dois extremos. Infelizmente, isso leva apenas à mediocridade ou aos artifícios verbais. Afirmar que o ato de dizer a verdade é meio caminho entre dizer uma mentira e corrigir uma falsidade é engenhoso, porém eticamente vão. (Aristóteles não postulou isso, mas teria tido necessidade de apresentar algo nessa linha, a fim de preencher a lacuna existente em seu argumento sobre o meio.)

Nos últimos anos de vida de Aristóteles, sua mulher, Pítia, morreu. O casamento obviamente se ajustava a ele, pois em seguida se casou com sua criada Herpilis, que viria a ser mãe de seu primeiro filho, Nicômaco. Em 323 a.C., no entanto, chegaram a Atenas notícias da morte de Alexandre na Babilônia, ao final de uma prolongada competição etílica com seus generais. Os atenienses há muito se ressentiam por estar sob o domínio dos incultos macedônios e, com a morte de Alexandre, deram vazão a seus sentimentos.

Aristóteles, que nascera na Macedônia e obtivera renome por ter sido tutor de seu mais competente rebento, tornou-se vítima dessa onda de antimacedonismo. Foi denunciado como ímpio numa acusação forjada, tendo seu acusador, o hierofante Eurímedon, citado o elogio que escrevera vinte anos antes, quando da morte de seu benfeitor, o eunuco Hérmias de Atarneus.

A multidão exigia vítimas, e Aristóteles teria sido sem dúvida condenado à morte. Mas ele não era feito do mesmo material de Sócrates, não tinha inclinação para o martírio. Sabiamente, abandonou a cidade para evitar que Atenas “assassinasse duas vezes a filosofia”.

Não foi uma decisão fácil no entanto – significava que teria que abandonar seu amado Liceu para sempre. Destituído de sua biblioteca e do acesso a seus arquivos de pesquisa, o velho filósofo isolou se então em uma propriedade herdada de sua mãe, em Cálcis, cidade localizada cinqüenta quilômetros ao norte de Atenas, na extensa ilha de Eubéia, no ponto em que ela se separa do continente por um estreito canal.

As águas desse canal sujeitam-se a um fenômeno inexplicável. Embora o Egeu virtualmente não sofra o efeito das marés, um fluxo rápido corre através do canal, mudando de direção, por razões que não se podem justificar, cerca de doze vezes por dia. Uma antiga lenda local sugere que Aristóteles passou dias quebrando a cabeça à cata de uma explicação para o fenômeno – e quando, pela primeira vez na vida, viu-se derrotado, pulou na água e se afogou.

Fontes históricas mais confiáveis registram que Aristóteles morreu em 322 a.C., aos sessenta e três anos, um ano depois de ter chegado a Cálcis. Diz-se que morreu de uma doença estomacal, embora uma fonte sustente que cometeu suicídio bebendo acônito, veneno extraído do ranúnculo. Na época, esse extrato era eventualmente usado como remédio, o que me sugere uma overdose acidental ou eutanásia auto-administrada, ao invés de simples suicídio. Embora seja perfeitamente possível que sua amargura por ter perdido o Liceu o tenha levado a não mais considerar a vida digna de ser vivida.

O testamento de Aristóteles começa com as palavras imortais: “Tudo ficará bem, mas caso alguma coisa aconteça…” Prossegue dando instruções para a educação dos filhos e alforria a seus escravos. Informa em seguida ao executor do testamento que, caso Herpilis deseje se casar novamente, “não deve ser entregue a alguém sem méritos”. O autor desse documento parece um homem essencialmente prosaico e decente, de caráter não afetado pelo fato de ser veículo do gênio supremo.

Termina seu testamento solicitando que parte do dinheiro por ele deixado fosse usado para erigir estátuas de Zeus e Palas Atena, em tamanho natural, em Estagira. Não consegui detectar sinal dessas estátuas quando finalmente cheguei às pedras dispersas e deslocadas pela chuva da antiga Estagira durante o final de um temporal, naquela tarde pouco feliz, há muitos anos na Grécia. Enquanto vagava pela encosta abandonada pelos deuses, pilhei-me recordando a visão aristotélica sobre a natureza da comédia, segundo a qual a comicidade era meramente uma forma de feiura indolor.

Paralisado pelo frio e diante de uma vista nada bela, compreendi que havia ainda um caminho a percorrer no pensamento de Aristóteles, pelo menos no que diz respeito à comicidade.

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