sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Kant, citações

O trecho a seguir faz parte da abertura da Crítica da razão pura, onde Kant se prepara para lançar os alicerces de sua filosofia. Como se pode inferir da segunda frase, Kant começa da forma como pretende continuar. Insista em transpor essa cilada facilmente localizável e logo conhecerá um estado de espírito que com agilidade transcende a dificuldade do que ela transmite.

Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento
começa pela experiência; efetivamente, que outra coisa
poderia despertar e pôr em ação a nossa capacidade de
conhecer senão os objetos que afetam os sentidos e que, por
um lado, originam por si mesmos as representações e, por
outro lado, põem em movimento a nossa faculdade
intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las,
transformando assim a matéria bruta das impressões
sensíveis num conhecimento que se denomina experiência?
Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede
em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento
tem o seu início.
Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a
experiência, isso não prova que todo ele derive da
experiência. Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento
por experiência ser um composto do que recebemos através
das impressões sensíveis e daquilo que a nossa própria
capacidade de conhecer (apenas posta em ação por
impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse
que não distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa
atenção não despertar por um longo exercício que nos torne
aptos a separá-los.
Crítica da razão pura, Introdução, Parte 1

Ele prossegue em sua argumentação:

Haverá um conhecimento assim, independente da experiência e de todas as impressões dos sentidos? Denomina-se a priori esse conhecimento e distingue-se do empírico, cuja origem é a posteriori, ou seja, na experiência. Esta expressão não é, contudo, ainda suficientemente definida para designar de um modo conveniente todo o sentido da questão apresentada. Na verdade, costuma dizerse de alguns conhecimentos, provenientes de fontes da experiência, que deles somos capazes ou os possuímos a priori porque os não derivamos imediatamente da experiência, mas de uma regra geral, que todavia fomos buscar à experiência.

Assim, diz-se de alguém, que minou os alicerces da sua casa, que podia saber a priori que ela havia de ruir, isto é, que não deveria esperar, para saber pela experiência, o real desmoronamento. Contudo, não poderia sabê-lo totalmente a priori, pois era necessário ter-lhe sido revelado anteriormente, pela experiência, que os corpos são pesados e caem quando lhes é retirado o sustentáculo.
Ibid., Introdução, Parte 1

Kant prossegue para explicar:

Por esta razão designaremos, doravante, por juízos a priori não aqueles que não dependem desta ou daquela experiência, mas aqueles em que se verifica absoluta independência de toda e qualquer experiência. Dos conhecimentos a priori, são puros aqueles em que nada de empírico se mistura. Assim, por exemplo, a proposição, segundo a qual toda a mudança tem uma causa, é uma proposição a priori, mas não é pura, porque a mudança é um conceito que só pode extrair-se da experiência.
Ibid., Introdução, Parte 1

A argumentação avança e o enredo se adensa, Esta oportunidade extremamente rara de acompanhar um dos espíritos mais requintados da história na medida em que vai criando na sua forma original não deve ser perdida. Pretender chegar a essas alturas de maneira fácil invalida todo o objetivo do exercício:

Necessitamos agora de um critério pelo qual possamos distinguir seguramente um conhecimento puro de um conhecimento empírico. E verdade que a experiência nos ensina que algo é constituído desta ou daquela maneira, mas não que não possa sê-lo diferentemente. Em primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária, estamos em presença de um juízo a priori; se, além disso, essa proposição não for derivada de nenhuma outra, que por seu turno tenha o valor de uma proposição necessária, então é absolutamente a priori.

Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram exceções a esta ou àquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, de tal modo que, nenhuma exceção se admite como possível, não é derivado da experiência, mas é absolutamente válido a priori. A universalidade empírica é, assim, uma extensão arbitrária da validade, em que se transfere para a totalidade dos casos a validade da maioria, como, por exemplo, na seguinte proposição: todos os corpos são pesados.

Em contrapartida, sempre que a um juízo pertence, essencialmente, uma rigorosa universalidade, este juízo provém de uma fonte particular do conhecimento, a saber, de uma faculdade de conhecimento a priori. Necessidade e rigorosa universalidade são pois os sinais seguros de um conhecimento a priori e são inseparáveis uma da outra. Porém, como na prática certas vezes é mais fácil de mostrar a limitação empírica do que a contingência dos juízos e outras vezes mais conveniente mostrar a universalidade ilimitada, que atribuímos a um juízo, do que a sua necessidade, é aconselhável servirmo-nos, separadamente, dos dois critérios, cada um dos quais é de per si infalível.
Ibid., Introdução, Parte 2

Kant nesse instante elabora:

É fácil mostrar que há realmente no conhecimento humano juízos necessários e universais, no mais rigoroso sentido, ou seja, juízos puros a priori. Se quisermos um exemplo, extraído das ciências, basta volver os olhos para todos os juízos da matemática; se quisermos um exemplo, tirado do uso mais comum do entendimento, pode servir-nos a proposição segundo a qual todas as mudanças têm que ter uma causa. Neste último, o conceito de uma causa contém, tão manifestamente, o conceito de uma ligação necessária com um efeito e uma rigorosa universalidade da regra, que esse conceito de causa totalmente se perderia, se quiséssemos derivá-lo, como Hume o fez, de uma associação freqüente do fato atual com o fato precedente e de um hábito daí resultante (de uma necessidade, portanto, apenas subjetiva) de ligar entre si representações. Poder-se-ia também demonstrar, sem haver necessidade de recorrer a exemplos semelhantes, a realidade de princípios puros a priori no nosso conhecimento, que estes princípios são imprescindíveis para a própria possibilidade da experiência, por conseguinte, expor a sua necessidade a priori.

Pois onde iria a própria experiência buscar a certeza, se todas as regras, segundo as quais progride, fossem continuamente empíricas e, portanto, contingentes? Seria difícil, por causa disso, dar a essas regras o valor de primeiros princípios. Aqui podemo-nos bastar com ter exposto, a título de fato, juntamente com os seus critérios, o uso puro da nossa capacidade de conhecer. Todavia não é apenas nos juízos, mas ainda em alguns conceitos, que se revela uma origem a priori.

Eliminai, pouco a pouco, do vosso conceito de experiência de um corpo tudo o que nele é empírico, a cor, a rugosidade ou maciez, o peso, a própria impenetrabilidade; restará, por fim, o espaço que esse corpo (agora totalmente desaparecido) ocupava e que não podereis eliminar. De igual modo, se eliminardes do vosso conceito empírico de qualquer objeto, seja ele corporal ou não, todas as qualidades que a experiência vos ensinou, não poderíeis contudo retirar lhe aquelas pelas quais o pensais como substância ou como inerente a uma substância (embora este conceito contenha mais determinações do que o conceito de um objeto em geral). Obrigados pela necessidade com que este conceito se vos impõe, tereis de admitir que tem a sua sede a priori na nossa faculdade de conhecer.
Ibid., Introdução, Parte 2

Nesse ponto Kant explica a noção de Tempo segundo a sua filosofia:

O tempo não possui realidade objetiva; não é um acidente, nem uma substância, e nem uma relação: é uma condição puramente subjetiva, necessária por conta da natureza do espírito humano, que coordena todas as nossas sensibilidades mediante determinada lei, e é pura intuição. Coordenamos da mesma forma substâncias e acidentes, segundo a simultaneidade e a seqüência, através apenas do conceito de tempo. De Mundi Sensibilis atque intelligibilis forma et principus, 3, 14.

Kant passa, nesse momento, a distinguir entre diferentes tipos de felicidade:

Se alguém só é feliz quando consegue satisfazer um desejo, o sentimento que faz com que goze prazeres tão grandes, sem que necessite de grandes habilidades para isso, é certamente assunto não trivial. Os gordos, cujos artistas favoritos são seus cozinheiros e cujas obras-primas repousam em seus celeiros, regozijam-se em suas obscenidades comuns e em suas observações vulgares tanto quanto as almas mais nobres desfrutam de seus objetivos mais requintados.

Um indivíduo indolente que adore que lhe leiam livros em voz alta porque gosta de adormecer dessa forma, o empresário que considera todos os prazeres uma distração que o desvia de lutar por seus lucros em um negócio rendoso, alguém que adora o sexo oposto pelo simples prazer de possuí-lo e nada mais, o caçador sagaz, seja ele mero caçador de moscas, como o imperador romano

Domiciano, ou de animais ferozes como A — todos têm sentimentos que os fazem experimentar prazer à sua própria maneira, sem que sintam inveja de outros ou sejam até mesmo capazes de imaginar outros prazeres. Esse tipo de sentimento, que pode ocorrer sem qualquer pensamento, eu desconsiderarei por completo.

Sua argumentação prossegue:

O sentimento requintado, que passo a considerar, é em grande parte de dois tipos: o sentimento do sublime e o do belo. Cada um deles nos dá prazer, mas de formas diferentes. A visão do pico de uma montanha coberto de neve elevando-se sobre as nuvens, a descrição de uma tempestade violenta ou a representação de Milton do reino do inferno - cada um deles nos proporciona alegria, porém mesclada com o terror. Por outro lado, a visão de prados cobertos de flores, de vales com arroios sinuosos e rebanhos pastando, a descrição do Elísio, ou o relato de Homero sobre o cinturão de Vênus, também nos dão uma sensação agradável, mas repleta de alegria e felicidade. Para sentir a primeira sensação temos que ter o sentimento do sublime, mas a fim de experimentar a última há que se ter o sentimento do belo. "Do belo e do sublime", Seção 1, parágrafos 2 & 3

Um exemplo raro de poesia kantiana. Foi escrita em 1782, por ocasião da morte do pastor Lilienthal, que casara os pais de Kant:

Was auf das Lebenfolgt deckt tiefe Finsterniss; Was uns zu thun gebuhrt, dess sind wis nur gewiss. O que vem depois da vida se esconde na escuridão profunda; O que se espera que façamos, somos os únicos que sabemos.

O texto que se segue aproxima-se bastante da explicação para a popularidade das aulas de geografia que Kant dava aos cidadãos de Königsberg. Foi escrito, no século XIX, pelo dr. J.H. Stirling, de nacionalidade britânica, membro da Sociedade Filosófica de Berlim:

[Nas aulas de geografia de Kant] ele não pode deixar de se referir a alguns dos fatos mais interessantes que o influenciaram ... Os negros nascem de cor branca, excetuando um círculo em torno do umbigo. O íbis morre tão logo deixa o Egito. O leão é tão nobre que é incapaz de tocar uma mulher com a pata ... A água no Cabo é tão pura que permanece doce quando trazida à Europa. Se fizer um copo de chifre de rinoceronte, qualquer veneno poderá rachá-lo ... Nas Ilhas Canárias existe a árvore da vida que nunca apodrece, seja no solo ou na água.

Há um molusco na Itália que fornece tanta luz que se pode ler perto dela. No Languedoc acontece uma primavera tão quente que chega a chocar ovos ... Os animais ferozes só comem negros em Gâmbia e deixam os europeus em paz. Os negros na América adoram carne de cachorro e todos os cães latem para eles.

De acordo com o dr. Stirling, essas opiniões eram "todas apresentadas com gravidade".