segunda-feira, 30 de julho de 2018

Kant VIDA E OBRA - PARTE 1

INTRODUÇÃO

O simples fato de alguma coisa ser impossível não significa que alguém não irá tentar realizá-la. Kant não apenas tentou, mas conseguiu alcançar o impossível. Depois de Hume ter destruído a filosofia, e todas as possibilidades de construção de um sistema metafísico, Kant criou o maior de todos eles. Seu propósito era refutar Hume, mas felizmente ele havia lido apenas a Investigação sobre o entendimento humano, e não o ceticismo mais penetrante do anterior Tratado sobre a natureza, humana. Tivesse Kant lido o Tratado e talvez não houvesse elaborado qualquer sistema. Teria sido lamentável e teria deixado toda uma geração de professores de filosofia alemã do século XIX desempregada.

O sistema de Kant é como a ideia de gravidade de Newton. Não é a resposta final, mas está próximo da forma como ainda vemos o mundo. Não erraremos muito se olharmos o mundo à maneira de Kant. A filosofia de Hume é essencialmente simplista: reduz nossa condição filosófica ao refúgio estéril do solipsismo. Kant, construindo nas areias ilusórias do erro, erigiu um maravilhoso castelo, de imensa engenhosidade e complexidade, capaz de nos manter absortos e cheios de felicidade, com nosso balde e nossa pá, durante as férias inteiras.

É difícil saber o que dizer sobre a vida de Kant. Na prática, ele não viveu (fora da mente). Nada que possa despertar qualquer interesse lhe aconteceu. No entanto, a descrição de uma vida de extremo tédio não necessita ser, ela própria, maçante — conforme foi demonstrado por seu contemporâneo Casanova e, mais recentemente, por Hemingway.


VIDA E OBRA - PARTE 1

Immanuel Kant nasceu em 22 de abril de 1724 na cidade báltica de Kõnigsberg, então capital da isolada província alemã da Prússia Oriental (atualmente Kaliningrado, na Rússia). Seus ancestrais haviam emigrado da Escócia no século anterior e há grande probabilidade de que tivessem algum grau de parentesco com Andrew Cant, notório pregador escocês do século XVII. Consta que Cant teria sido a origem do verbo inglês to cant, que se refere ao "uso de jargão" - traço de família que reapareceria impetuosamente no filósofo.

Na época do nascimento de Kant, a Prússia Oriental se recuperava das devastações trazidas pelas guerras e pela peste, que haviam reduzido a população a menos da metade. Kant foi criado em atmosfera de pobreza e religiosidade. Era o quarto filho da família - constituída de cinco irmãs e um irmão mais novo. O pai, escocês, cortava tiras de couro e decla rava jocosamente "não conseguir nunca equilibrar o orçamento", fosse em casa, fosse no trabalho. Kant manteve sempre atitude respeitosa em relação a ele, indivíduo amável porém acuado financeiramente, e diz-se que quando criança gostava de observá-lo cortando com habilidade pedaços de couro para arreios.

No entanto, de acordo com o psicólogo e filósofo Ben-Ami Scharftstein, dada a destreza do pai, "a inabilidade manual de Kant é, por conseguinte, digna de nota". Seja esse o caso ou não, e de que tipo de nota ele é digno precisamente, a principal e primeira influência na vida de Kant foi sem dúvida sua mãe. Frau Kant era uma alemã totalmente inculta, que se diz ter sido dona de grande "inteligência natural", fato que influenciou de forma especial seu filho Imma-nuel - ou Manelchen, como ela o chamava ("Pequeno Manuel"). Tinha o hábito de levá-lo para passeios no campo e dizer-lhe os nomes das plantas e flores. A noite, costumava mostrar-lhe as estrelas, indicando seus nomes e as constelações a que pertenciam. Era uma mulher piedosa, e seu jeito afetuoso porém austero também desempenhou função educativa na formação do caráter moral de seu filho. Essa dupla insistência em fatos e obrigações morais seria uma faceta de Kant por toda a sua vida, além de exercer papel capital em sua filosofia.

A observação mais tamosa de Kant, enunciada mais de cinqüenta anos depois, remonta aos primeiros dias com sua mãe: "O céu estrelado acima e a lei moral no interior enchem o espírito de admiração e reverência sempre novas e crescentes quanto mais firme e freqüente se mostra nossa reflexão." Kant foi educado num rigoroso ambiente pietista e dos oito aos dezesseis anos frequentou a escola local, onde sua inteligência excepcional e sua aguda sede de saber logo se cansaram da interminável educação religiosa. Seu desgosto com a religião formal permaneceria com ele até o final da vida (na idade madura jamais frequentou a igreja). Apesar disso, conservou muito da postura pietista, com sua crença em um estilo de vida simples e sua adesão à moralidade rigorosa.

Em 1737, sua mãe morreu e teve enterro de pobre. Kant tinha quatorze anos e, segundo ele próprio, por essa época experimentou as primeiras manifestações da sexualidade. Psicólogos já sugeriram que a perda da mãe que tanto amava nesse estágio da puberdade fez com que se sentisse culpado e reprimisse seus desejos sexuais. Ou foi esse o caso ou os desejos simplesmente desapareceram. Qualquer que tenha sido a causa, daí em diante Kant viveria uma vida de repressão sexual que
assumiria proporções heróicas.

Aos dezoito anos foi admitido na Universidade de Kõnigsberg como estudante de teologia. No início recebeu ajuda financeira da igreja pietista local, mas colaborava para seu próprio sustento dando aulas para alguns colegas mais atrasados. Logo se cansou da teologia e começou a demonstrar enorme interesse pela matemática e pela física. Leu Newton, que abriu seus olhos para as implicações filosóficas das novas descobertas da ciência e para os grandes progressos então alcançados em todas os setores desse campo, da astronomia à zoologia. A ciência baseada na experiência só podia ser acomodada numa filosofia empirista, ou seja, uma filosofia que baseasse nosso conhecimento do mundo na experiência.

Em 1746, quando contava vinte e dois anos, seu pai morreu. Ele próprio, o irmão e as cinco irmãs mais jovens foram deixados sem centavo. As irmãs caçulas foram entregues a uma família pietista, as mais velhas foram trabalhar como camareiras. Kant tentou sem sucesso um emprego numa escola local e foi forçado a abandonar a universidade sem obter o diploma. Nos nove anos seguintes Kant se manteve dando aulas particulares para famílias ricas nas áreas rurais vizinhas. Por algum tempo foi contratado pelo conde e Condessa Keyserling (família aristocrática que mais tarde iria gerar o pseudofilósofo Hermann Keyserling, cujas idéias elevadas, porém falsas, seriam o grande consolo das desiludidas matronas da sociedade após a Primeira Guerra Mundial).

Sempre que conseguia algum dinheiro extra, Kant o remetia a suas irmãs menos afortunadas, hábito que conservou por toda a vida. Além desses gestos de generosidade, porém, não mantinha qualquer contato pessoal com a família. Não em função de qualquer atitude esnobe de sua parte, mas, segundo se alega, devido à "natural austeridade e objetividade de seu caráter", o que se tornaria um traço pessoal do filósofo em sua vida futura. Suas cinco irmãs continuariam a residir em Königsberg (cidade de apenas 50.000 habitantes) durante todo o tempo de vida do filósofo, mas ele não se encontrou com nenhuma por mais de vinte e cinco anos.

Quando finalmente uma delas veio visitá-lo, ele nem sequer a reconheceu. Quando lhe informaram quem era, desculpou-se junto aos companheiros por sua falta de cultura. Kant pode não ter sido esnobe, mas ficou conhecido por sua incapacidade de suportar os tolos. Até mesmo em sua própria família, tudo indica. No entanto, esse incidente traz à tona um detalhe curioso. A irmã de Kant devia ter mais que uma semelhança passageira com a mãe, tanto intelectual quanto fisicamente. E teria mais ou menos a mesma idade da mãe quando esta o criou. Significaria esse gesto que o celebrado amor de Kant pela mãe se tornara tão profundo que ele já não o reconhecia? Sugere-se que Kant, inconscientemente, se ressentia da cadeia repressora - circunstâncias, moralidade, aniquilamento sexual - que a mãe lhe impusera.

Sua incapacidade de reconhecer a irmã (ou de ter de fato alguma coisa a ver com ela) pode perfeitamente estar relacionado a isso, mas não há forma de saber. (A total ausência de vida em Kant atraiu perversamente muito mais atenção dos psicólogos do que a vida comparativamente normal de outros filósofos, embora, a meu ver, a própria noção de normalidade nesse campo seja um ponto discutível.)

Kant pode ser sido indiferente em relação à sua própria família, mas parece ter desfrutado a vida no meio das famílias ricas que o contratavam como professor. Sua aparência era bastante excêntrica, como seu próprio caráter. Tinha menos de um metro e meio e sua cabeça era desproporcional em relação ao resto do corpo. Sua estrutura lembrava a rosca de um saca-rolhas e fazia com que o ombro esquerdo se inclinasse para a frente, o direito se curvasse para trás e a cabeça tendesse a pender para um lado. Vestido com roupas puídas e praticamente sem nenhum pfenning no bolso, não seria exatamente o sucesso do campus na Universidade de Königsberg (que, por seu turno, dificilmente poderia ser considerada centro de qualquer sociedade cosmopolita).

Nesse momento, no entanto, vestido por seus empregadores cm trajes elegantes e encorajado a juntar se aos convidados da família, Kant positivamente floresceu. Logo desenvolveu uma aguda perspicácia, adquiriu um verniz de sofisticada segurança e tornou-se exímio jogador de cartas e de bilhar. Quando a família partia para as férias de verão no campo, Kant os acompanhava, afastando-se quase oitenta quilômetros de Königsberg. (Isso foi o mais longe de sua cidade natal a que ele jamais chegaria em toda a sua vida.) Mas esse período de elegância relativa foi apenas uma fase.

Em 1755, aos trinta e um anos, Kant finalmente se graduou pela Universidade de Königsberg, em parte devido à caridade de um benfeitor pietista. Era tarde para se conseguir um diploma; e, como veremos, Kant era excepcionalmente lento na execução de seus projetos. Por volta dessa idade, quase todos os outros principais filósofos já haviam começado a formular as idéias pelas quais seriam lembrados. Somente duas décadas mais tarde Kant começou de fato a produzir filosofia com originalidade.

Tudo sobre Kant

Vida e obra - parte 1.

Vida e obra - parte 2.

Vida e obra - parte 3.

Vida e obra - parte 4.













domingo, 29 de julho de 2018

Citações

Fazemos guerra para poder viver em paz.
Ética a Nicômaco, Livro X, 1177b, 5-6

O bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa. Mas é preciso ajuntar “numa vida completa”. Porquanto uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um breve espaço de tempo, não faz um homem feliz e venturoso.
Ética a Nicômaco, Livro I, 1098a, 16-19

É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções”.
Poética, 1449b, 24-8

Aquele que estuda a forma como as coisas se originaram e passaram a existir, quer se trate do estado ou de qualquer outra coisa, terá delas a mais clara visão.
Política, 1252a, 24-5

É evidente, dessa forma, que o estado é criação da natureza … E é uma das características do homem, que somente ele possui, um sentido de bem e de mal, de justiça e de injustiça, e de propriedades semelhantes, sendo que a reunião de seres vivos que possuem esse sentido constitui uma familia e um estado.
Política, 1253a, 2-18.


A noção de estado é naturalmente anterior à de família ou à de indivíduo, uma vez que o todo deve necessariamente anteceder as partes. Se se destrói o homem como um todo, não se pode dizer que um pé ou mão permaneceu, a menos que se olhe para eles como se fossem feitos de pedra – pois certamente estarão mortos. Só se pode entender uma coisa como ela é em função de sua engenhosidade e de sua capacidade de realizá-la.

E quando não mais possui essa engenhosidade ou essa capacidade, não permanece igual, simplesmente tem o mesmo nome. Dessa forma, é incontestável que uma cidade precede um indivíduo. Pois se um indivíduo não for suficiente em si mesmo para constituir um governo perfeito, ele simplesmente será em relação a uma cidade aquilo que outras partes são em relação a um todo. E qualquer um que não seja capaz de viver em sociedade, ou não precise fazê-lo, por ser suficiente em si mesmo, deve ser ou uma besta ou um deus.

Todos têm, portanto, um impulso natural para se associar a outros dessa maneira, e quem quer que seja que tenha fundado a primeira sociedade civil produziu o maior bem para a humanidade. Dessa forma, o homem é a melhor de todas as criaturas vivas, assim como, sem leis e justiça, seria o pior. Pois nada é tão difícil de erradicar quanto a injustiça perpetrada pela força. Mas o homem nasce com essa força – que é tanto prudência quanto valor – e ela pode ser usada tanto para fins justos quanto para objetivos injustos.

Aqueles que abusarem dessa força serão os seres mais iníquos, concupiscentes e insaciáveis jamais imaginados. Por outro lado, a justiça é o que aproxima os homens do estado; pois a administração da justiça, que consiste em determinar o que é justo, é o princípio da ordem na sociedade política.
Política, 1253a, 25-40


Os democratas sustentam que a democracia é o que a maioria decide, aqueles que são a favor das oligarquias acreditam que os que possuem mais riqueza deveriam ser os responsáveis pelas decisões. Mas ambas as formas são injustas. Se seguirmos o que é proposto por poucos, logo teremos uma tirania. Pois se uma pessoa possui mais do que quaisquer outros, de acordo com a justiça oligárquica, este homem isoladamente tem direito ao poder supremo.

Por outro lado, se a superioridade numérica prevalecer como critério, perpetrar-se-á a injustiça mediante o confisco das propriedades dos ricos, que estarão em minoria e sem direito à palavra. A noção de igualdade, à qual ambas as partes aquiescerão, deve portanto derivar da definição de direito comum a ambas.
Política, 1318a, 19-28

O que precede basta para provar que os seres matemáticos não são substâncias em grau mais eminente do que os corpos; que não são anteriores aos sensíveis quanto ao ser, mas apenas quanto à definição; e que não podem ter em lugar algum uma existência separada. Mas, como tampouco é possível que existam nos sensíveis, torna-se evidente que não existem em absoluto, ou existem nalgum sentido especial e restrito. Com efeito, “existir” tem muitas significações.
Metafísica, 1077b, 12-17


Naquilo que diz respeito aos corpos naturais, alguns têm vida e outros não. Isso equivale a dizer que alguns são capazes de nutrirem a si mesmos, de crescer e de se decompor. Dessa forma, todos os corpos naturais vivos, que devem ser substância, devem também ser uma substância complexa. Mas, já que é um corpo de natureza específica – ou seja, que contém vida – o corpo não pode ser alma.

Porque um corpo é um sujeito, e não alguma coisa atribuída a um sujeito, e dessa forma é matéria. A alma é portanto substância no sentido de que é a forma de um corpo natural, que é potencialmente dotado de vida. Substância nesse sentido é realidade. Dessa forma, a alma é a realidade do corpo vivo. Mas a realidade tem dois sentidos, semelhantes à posse do conhecimento e ao uso do conhecimento. A realidade de que estamos falando é similar à posse do conhecimento. Porque tanto dormir quanto acordar exigem a presença de uma alma – e acordar equivale ao uso do conhecimento, enquanto dormir se assemelha à posse do conhecimento sem que se o utilize.
De anima, 412a, 17-26

É óbvio que há causas, e muitas. São elas descobertas quando começamos a indagar: “Por que isto aconteceu?” Isso nos faz retroceder a diversas questões básicas. Quando nos defrontamos com coisas imutáveis, resta-nos a pergunta: “O que é isto?” Por exemplo, em matemática tudo se resume à definição de uma linha reta ou do número ou de coisa semelhante. Ou em outros casos, poderíamos ser levados a perguntar: “O que provocou essa mudança?” Como, por exemplo: “Por que essas pessoas foram para a guerra?” A resposta nesse caso poderia ser: “Por causa de invasões de fronteira.” Ou poderia ser por conta da finalidade da coisa em si: em outras palavras, lutaram por poder.

Em outra categoria, onde as coisas passam a existir, sua finalidade será a matéria. Evidentemente, essas são as causas. Existem vários tipos diferentes de causa e qualquer um que queira entender a natureza deveria saber como desvendá-las. De fato, há quatro tipos diferentes: matéria, forma, o que quer que seja que provoque a mudança e qualquer que seja a finalidade da coisa.
Física, 198a, 14-24

Dessa forma, sendo o movimento eterno, se existe uma causa inicial, ela também deve ser eterna … e nesse caso é suficiente admitir que há apenas uma causa, a primeira a pôr as coisas estacionárias em movimento, e sendo esta eterna se constituirá em princípio de movimento para todas as outras coisas.
Física, 259a, 7-14

Aristóteles escreveu e pensou de forma tão original a respeito de tantas coisas que fatalmente perceberia algumas delas erroneamente:
Aqueles cujas narinas têm extremidades espessas são preguiçosos, tal qual o gado. Aqueles que possuem narizes de pontas grossas são insensíveis, assim como os javalis. Por outro lado, pessoas cujos narizes têm ponta fina irritam-se com facilidade, de maneira muito semelhante aos cães. Contudo, os de nariz de ponta arredondada e chata são magnânimos, da mesma forma que os leões. Pessoas de nariz de ponta fina são como pássaros; mas quando o nariz é curvo e se lança diretamente da testa são passíveis de comportamento despudorado (assim como os corvos).
Fisiognomia, VI, 28-36

Foi grande a contribuição de Aristóteles no estabelecimento da pesquisa e da categorização científicas. Suas realizações são extraordinárias, principalmente se considerarmos grande parte das provas e do material então existentes – alguns dos quais ele registrou:
Diz-se na Arábia que há uma espécie de hiena que paralisa sua presa tão somente com sua presença. Se essa hiena pisar sobre a sombra de um homem, ela não apenas o paralisará, mas o transformará num ser totalmente estúpido …

Existem dois rios na Eubéia. O gado que bebe daquele chamado Cerbes se torna branco e aquele que bebe do outro chamado Neleus adquire a cor preta … O rio Reno corre na direção contrária aos outros rios, dirigindo-se para o norte, onde vivem os alemães. No verão suas águas são navegáveis, mas no inverno congelam-se, de forma que as pessoas podem caminhar sobre elas como se fosse sobre terra.

Sobre coisas maravilhosas ouvidas, 145, 168

domingo, 22 de julho de 2018

Aristóteles VIDA E OBRA - PARTE 4

Quando Aristóteles se viu forçado a fugir de Atenas em 323 a.C., deixou o Liceu a cargo de Teofrasto. Segundo uma fonte, Teofrasto se apaixonara pelo filho de Aristóteles, que fora seu aluno, porém Aristóteles não considerou que essa tradicional ocupação desqualificasse seu sucessor. Teofrasto garantiu a continuidade do Liceu após a partida de seu fundador, e sua Escola Peripatética de filósofos logo começou a viver de acordo com o nome, perambulando por todo o mundo clássico, levando a filosofia aristotélica aonde quer que fosse.

Contudo, foram necessários aproximadamente três séculos após a morte de Aristóteles para que seus trabalhos fossem reunidos na forma em que são hoje conhecidos. Sua obra pode ser dividida em dois grupos – as que escreveu para publicação e as notas das aulas dadas no Liceu (que não eram destinadas a publicação).

Como era inevitável, as primeiras se perderam, e as únicas que chegaram até nós foram as últimas, inicialmente em fragmentos e cobrindo centenas de rolos de pergaminhos, organizados segundo as diferentes obras por Andrônico de Rodes, último líder do Liceu. É a Andrônico que devemos a palavra “metafísica” – título dado a um grupo de obras originalmente sem título que se seguiam aos volumes de física, o que fez com que ele as rotulasse simplesmente como “depois da física”, que em grego antigo se diz “metafísica”.

As obras contidas nessa seção compreendem os tratados sobre ontologia e a natureza última das coisas, assunto que rapidamente se identificou com o rótulo colado a essas obras: metafísica. Essa palavra, portanto, que através dos séculos tornou-se sinônimo da própria filosofia, de início nada tinha a ver com a filosofia por ela descrita. Assim como a própria filosofia, começou com um erro e continuou a florescer como tal desde então.

Durante a era clássica, Aristóteles não era considerado um dos grandes filósofos gregos (ombreado a seus pares Sócrates ou Platão). Na era romana foi reconhecido como o maior lógico, mas o restante de sua filosofia foi em geral ofuscado (ou absorvido) pelo neoplatonismo crescente, o qual, por sua vez, ao longo dos séculos, foi em sua maior parte assimilado pelo cristianismo.

Os pensadores cristãos logo se deram conta da utilidade da lógica aristotélica, e Aristóteles passou a ser reconhecido como a autoridade suprema do método filosófico. A lógica aristotélica persistiria como a base do intenso debate teológico travado durante toda a Idade Média. Os ativos monges intelectuais entregavam-se à busca minuciosa de argumentos lógicos, as mentes mais refinadas utilizando-se dessa prática na caça aos heréticos.

A lógica aristotélica, inquestionável do ponto de vista teológico, tornou-se, assim, parte do cânone cristão. No entanto, paralelamente a esse desenvolvimento cristão europeu do pensamento de Aristóteles, havia um outro, oriental, tão importante quanto o primeiro, e que teria conseqüências profundas sobre a Europa medieval.

Durante os primeiros séculos do primeiro milênio depois de Cristo o corpo principal da obra de Aristóteles permaneceu desconhecido do mundo ocidental. Apenas no Oriente Médio continuaram os eruditos a estudar o pleno alcance de sua filosofia. O século VII testemunharia o surgimento do islamismo, seguido da ampla conquista árabe em todo o Oriente Médio. Os intelectuais islâmicos rapidamente reconheceram os méritos da obra de Aristóteles, na qual não encontravam qualquer conflito com sua fé religiosa, e começaram a interpretá-la segundo seus próprios objetivos. Os ensinamentos de Aristóteles foram logo absorvidos, até o ponto em que quase toda a filosofia islâmica decorreu de interpretações de seu pensamento.

Foram os árabes os primeiros a compreender que Aristóteles era um dos grandes filósofos. Enquanto o mundo ocidental mergulhava na Idade das Trevas, o mundo islâmico continuou a se desenvolver intelectualmente. Prova dessa rica herança são as palavras que recolhemos do árabe, como álgebra, álcool e alquimia, assim como todo o nosso sistema de numeração.

A filosofia aristotélica viria a ser desenvolvida por dois grandes estudiosos islâmicos. Abu Aki Al Hu-say n Ibn Abd Allah Ibn Sana (felizmente conhecido entre nós como Avicena) nasceu na Pérsia no final do século X e se tornaria um dos maiores cientistas-filósofos do mundo islâmico. Sua volumosa obra sobre medicina está entre as melhores já escritas, tentativa nobre de resgatar este assunto da charlatanice de que sempre foi alvo.

Avicena tentou até mesmo reparar o que via como embustes na obra de Aristóteles. Percebeu vários problemas não abordados e chegou a fornecer-lhes respostas tal como Aristóteles teria feito caso os tivesse visto. Suas tentativas de tornar o pensamento aristotélico mais sistemático são magistrais e promovem a aglutinação de várias conclusões isoladas. Infelizmente, grande parte desse trabalho determinou o fim de opções que Aristóteles sempre quisera deixar em aberto, pois sabia que não podíamos saber tudo – Avicena tinha percepção diferente.

O outro grande comentador islâmico de Aristóteles foi Averróis, que viveu na Espanha moura, no século XII, e se tornou um misto de médico e filósofo dos califas de Córdoba. Averróis estava convencido de que a filosofia, em particular a filosofia de Aristóteles, era o verdadeiro caminho para a verdade; as revelações místicas eram apenas uma maneira inferior de se chegar a Deus. A razão era muito superior à fé.

Um dia o califa provocou Averróis perguntando-lhe como os céus tinham chegado a existir, o que obrigou o filósofo a confessar que não tinha resposta para essa pergunta. (Postura intelectual nem sempre sábia a ser adotada diante de um califa que emprega alguém para responder a tais questões.)

Felizmente o califa reconheceu a honestidade de Averróis e mandou que fosse buscar a resposta em Aristóteles. Pelos trinta anos seguintes Averróis escreveu uma seqüência infinita de comentários e interpretações sobre a obra de Aristóteles. (Embora inteligentemente jamais tenha apresentado resposta à pergunta original do califa: o próprio califa já havia se pronunciado sobre o assunto.)

Averróis, entretanto, elaborara, ele próprio, várias respostas a Aristóteles, chegando mesmo a fornecer argumentos, a partir de Aristóteles, para fundamentar seus pontos de vista (que, via de regra, contrariavam os de Aristóteles).

Esse era exatamente o tipo de enfoque que agradava aos sábios cristãos medievais, que rapidamente perceberam sua utilidade na perseguição aos heréticos. Traduções dos comentários de Averróis sobre Aristóteles logo começaram a circular em Paris, o grande centro de cultura da época. Mas não demorou muito para que os “averroístas”, como se tornaram conhecidos, se vissem em dificuldades.

Aristóteles podia ter sido aceito pela Igreja, mas esses novos ensinamentos sobre ele eram perigosamente heterodoxos. Diante do conflito entre razão e fé, não poderia haver dúvida quanto à supremacia da fé. Os averroístas acharam-se ameaçados de uma acusação de heresia, e a única forma que tiveram de se defender foi através do uso de argumentos da mesma fonte de sua heresia, ou seja, os escritos de Averróis.

Felizmente, a situação foi reparada por Tomás de Aquino, o maior dentre todos os sábios medievais, que conseguiu costurar um acordo. A razão deve de fato ser livre para operar de acordo com suas próprias leis inexoráveis, mas apenas dentro dos limites da fé. A razão sem a fé não era nada. Tomás de Aquino sentiu-se profundamente atraído por Aristóteles e logo reconheceu seu supremo valor. Ele iria dedicar grande parte de sua vida à harmonização da filosofia de Aristóteles com a da Igreja. No final, conseguiu firmar o aristotelismo como base filosófica da teologia cristã, o que viria a significar a edificação, e a ruína final, do aristotelismo.

A Igreja católica decretou que os ensinamentos de Aristóteles – segundo a interpretação de Tomás de Aquino – eram a Verdade, só podendo ser negados sob pena de heresia. (Situação que permanece em vigor até hoje.) Grande parte da filosofia de Aristóteles dizia respeito ao mundo natural, sendo, portanto, científica. A ciência, como a filosofia, faz pronunciamentos aparentemente verdadeiros – mas que mais tarde revelam-se falsos, necessitando ser modificados à medida que nossa compreensão do mundo avança.

Ao declarar que a obra de Aristóteles era como a Sagrada Escritura, a Igreja se viu numa encruzilhada (e, no caso, nos confins de uma terra plana). O conflito que se avizinhava entre a Igreja e a descoberta científica foi, dessa forma, inevitável.

Aristóteles não é responsável por esse conflito entre razão e fé, não resolvido de forma satisfatória no pensamento ocidental até este século. Mesmo com a morte do pensamento aristotélico, Aristóteles continuou a desempenhar um papel na filosofia moderna. Thomas Kuhn, filósofo da ciência contemporâneo – profundo admirador de Aristóteles –, declarou-se perplexo com o fato de que um gênio supremo também pudesse ser responsável por tantos erros simples.

Por exemplo, a despeito de alguns dos primeiros filósofos terem compreendido que a Terra girava em torno do Sol, Aristóteles permaneceu convicto de que a Terra era o centro do universo – erro que limitou seriamente o conhecimento da astronomia por mais de um milênio e meio. O pensamento científico, da mesma forma, teve seu desenvolvimento retardado pela crença de Aristóteles de que o mundo era constituído de quatro elementos primários: terra, ar, fogo e água. O estudo de Kuhn sobre os erros de Aristóteles levou-o a formular sua noção de paradigma, que revolucionou nosso pensamento sobre a filosofia da ciência (e teve também aplicações muito além desse campo).

Segundo Kuhn, Aristóteles foi levado ao erro em decorrência da maneira como ele e seus contemporâneos viam o mundo: o paradigma de seu pensamento. Os gregos antigos acreditavam que o mundo era constituído essencialmente de qualidades – forma, objetivo etc. Ao adotar essa visão de mundo, eles estavam fadados a chegar a inúmeras conclusões errôneas, tais como as que arruinaram o pensamento de Aristóteles.

A conclusão inevitável a ser tirada da noção de paradigmas de Kuhn é que não pode existir uma forma “verdadeira” de ver o mundo (seja científica seja filosoficamente). As conclusões a que chegamos dependem basicamente dos paradigmas que adotamos: o modo que escolhemos para pensar o mundo. Em outras palavras, não existe verdade definitiva.

Aristóteles VIDA E OBRA - PARTE 3

Em 336 a.C. Filipe da Macedônia foi assassinado, e Alexandre, então com dezesseis anos, ocupou o trono. Depois de prontamente executar todos os pretendentes e fazer algumas campanhas blitzkrieg preliminares através da Macedônia e da Albânia, cruzar a Bulgária e atravessar o Danúbio, descendo depois pela Grécia (reduzindo, en route, Tebas a uma ruína fumegante), Alexandre partiu então para sua campanha de conquista do mundo conhecido.

Na prática, isso incluía o norte da África, a Ásia até Tachkent e o norte da Índia. Felizmente, as lições de geografia de Aristóteles não mencionavam a China, cuja existência permanecia ignorada pelo Ocidente até então. Agora que Alexandre mantinha a mente ocupada com outros assuntos, a presença de Aristóteles não era mais necessária, sendo-lhe permitido retornar a Estagira. Porém, antes de deixar Pela, Aristóteles recomendou a Alexandre seu primo Calístenes para o cargo de intelectual da corte. Esse ato de generosidade lhe seria fatal.

Calístenes era um tanto falastrão, e Aristóteles, antes de partir, advertiu-o sobre os riscos de falar demais na corte. Quando Alexandre partiu em sua campanha de conquista do mundo, levou Calístenes como seu historiador oficial. Mas enquanto abriam caminho através da Pérsia, Calístenes parece ter provocado contra si próprio uma acusação de traição, o que fez com que Alexandre o trancafiasse numa gaiola portátil. Calístenes seguia ao lado do exército, derretendo sob o calor do deserto, o corpo coberto de feridas e insetos repulsivos – até que Alexandre, não suportando mais presenciar tal cena, lançou-o aos leões. Mas, como todos os megalomaníacos bem-sucedidos, Alexandre tinha seu lado paranóico: culpou Aristóteles pela traição de Calístenes.

Diz-se que esteve a ponto de assinar sua execução, mas acabou esquecendo; em vez disso, partiu para conquistar a Índia. Depois de passar cinco anos em Estagira, Aristóteles retornou a Atenas. Em 339 a.C. Espeusipo morreu e o cargo de líder da Academia ficou novamente vago. Dessa vez o indicado a ocupá-lo foi Xenócrates, velho amigo de Aristóteles, tido como indivíduo de caráter convenientemente austero e digno, embora em certa ocasião tenha feito jus à coroa de ouro “por sua proeza etílica na Festa das Ânforas”. (Xenócrates morreria no cargo vinte anos mais tarde: certa noite, trôpego, caiu dentro de um tonel de água.)

Aristóteles irritou-se de tal forma por ter sido novamente preterido que decidiu fundar uma escola rival própria. Instalou-a num grande ginásio fora dos muros da cidade, ao pé do monte Licabeto. O ginásio ficava colado ao Templo de Apolo Lício (Apolo sob a forma de lobo): daí a escola de Aristóteles ter ficado conhecida como Liceu.

O nome resiste até hoje, mais adequadamente na palavra francesa lycée – embora a razão precisa para a grande escola aristotélica ser também celebrada em nomes de salões de dança e teatros não seja tão clara. O Liceu original de Aristóteles certamente ensinava uma ampla gama de assuntos, mas as danças de salão e a arte de representar não alcançariam status acadêmico pleno até o século XX, no centro-oeste americano.

O Liceu parecia-se muito mais com uma universidade moderna do que a Academia. De dez em dez dias, era eleito um novo líder para o conselho de estudantes; havia cursos independentes que competiam pelos alunos; e até mesmo tentativas ocasionais de instituir um calendário de atividades eram feitas.

O Liceu realizou pesquisas em diversas ciências, transmitindo aos alunos as descobertas feitas – ao passo que a Academia estava mais interessada em dar a seus alunos noções básicas de política e direito, a fim de que pudessem se tornar futuros governantes da cidade. O Liceu era o MIT (ou talvez o Instituto de Estudos Avançados) da época, enquanto a Academia se parecia mais com Universidade de Oxford do século XIX ou com a Sorbonne.

As diferenças entre o Liceu e a Academia ilustram de forma adequada as divergências entre as filosofias de Aristóteles e Platão. Enquanto Platão escrevia A República, Aristóteles preferia reunir cópias das constituições de todas as cidades-estados gregas e selecionar os melhores artigos de cada uma. O Liceu era a escola à qual as cidades-estados recorriam quando queriam redigir uma nova constituição. Ninguém tentou proclamar a República.

Infelizmente, o minucioso estudo de Aristóteles sobre política já fora transformado em algo quase supérfluo – por ninguém menos que seu pior aluno, Alexandre. A face do mundo se modificava para sempre: o novo império de Alexandre fazia chegar ao fim a era da cidade-estado, assim como hoje a união européia pode estar a ponto de determinar o final efetivo das nações independentes européias.

Nem Aristóteles nem qualquer um da galáxia de intelectuais reunidos nas escolas de Atenas parecem ter se dado conta dessa grande mudança histórica – omissão que se equipara à dos intelectuais do século XIX, de Marx a Nietzsche, ao deixar de prever a supremacia da América. Aristóteles dava suas aulas enquanto caminhava com os alunos, razão pela qual seus seguidores tornaram-se conhecidos pelo nome de peripatéticos (os que caminham para cima e para baixo).

No entanto, alguns afirmam que receberam esse nome porque o mestre dava suas aulas na galeria coberta do ginásio (conhecida como Peripatos). Atribui-se a Aristóteles a fundação da lógica (mais de 2.000 anos seriam necessários para que surgisse um lógico de seu quilate), além de ter sido um metafísico quase ao nível de Platão e ter superado seu mestre tanto em ética quanto em epistemologia.

(Apesar disso, no quesito originalidade é Platão quem prevalece. Aristóteles pode ter fornecido as respostas, mas foi Platão quem percebeu antes as questões básicas dignas de indagação.) Aristóteles, cujo feito mais significativo deu-se no campo da lógica, chegou a considerá-la o alicerce sobre o qual todo o conhecimento repousa. Platão intuíra que o conhecimento podia ser adquirido pela dialética (discussão, sob forma de conversa, mediante perguntas e respostas). Mas foi Aristóteles quem formalizou e desenvolveu esse


método com a descoberta do silogismo, o qual, segundo ele, mostrava que “quando certas coisas são afirmadas, pode-se demonstrar que alguma coisa que não a afirmada necessariamente se segue”. Por exemplo, se fizermos as duas afirmações seguintes:
Todos os humanos são mortais.
Todos os gregos são humanos.
podemos inferir que:

Todos os gregos são mortais.
O que é logicamente necessário e inegável.

Aristóteles chamou sua lógica de “analitika”, que significa “explicitadora”. Toda ciência ou campo de conhecimento tinha de surgir de um conjunto de princípios básicos ou axiomas. A partir destes, as verdades poderiam ser deduzidas através da lógica (ou explicitadas). Esses axiomas definiam um determinado campo temático, separando-o dos elementos irrelevantes ou incompatíveis. Biologia e poesia, por exemplo, partiam de premissas mutuamente excludentes. Dessa forma, os animais mitológicos não faziam parte da biologia e a biologia não precisava ser escrita sob a forma de poesia.

Esse enfoque lógico liberou campos inteiros de conhecimento, fornecendo-lhes potencial para descobrir conjuntos novos e completos de verdades. Seriam necessários dois milênios antes que essas definições se tornassem um ponto de estrangulamento, restringindo o desenvolvimento do conhecimento humano.

O pensamento de Aristóteles foi filosofia por muitos séculos adiante e na Idade Média chegou a ser considerado um evangelho, o que impediu que continuasse a se desenvolver. Esse mesmo pensamento pode ter construído o edifício intelectual do mundo medieval, mas mal se pode atribuir ao autor a responsabilidade por ele ter se tornado uma prisão.

O próprio Aristóteles jamais teria permitido isso. Suas obras são permeadas pelo tipo de inconsistência que mostra um espírito em permanente questionamento e evolução. Ele preferia investigar o funcionamento real do mundo, ao invés da mera especulação sobre sua natureza. Até mesmo seus erros são, com freqüência, expressos poeticamente – “o ódio é o sangue fervendo em torno do coração”, “o azul do olho vem do céu”. Num estilo tipicamente grego, viu a educação como o caminho pelo qual a humanidade poderia avançar, acreditando que um homem educado diferia do que não possuía educação “tanto quanto os mortos dos vivos”.

No entanto, o lugar que atribuía à educação não era revestido de um otimismo raso: “É um adorno na prosperidade e um refúgio na adversidade.” Ele pode até ter se tornado, no final de sua vida, um pouco pedante, mas há indicações de que tenha tido sua cota de sofrimento. Permaneceu professor durante toda a vida e nunca pleiteou cargo público, porém nenhum homem em toda a história humana jamais teve, e dificilmente terá, influência tão duradoura sobre o mundo – pelo menos até aparecer o monstro que aperte o botão nuclear.

Nisso tivemos sorte, pois Aristóteles parece ter sido um bom homem. Para ele o objetivo da humanidade era a conquista da felicidade, que ele definia como a concretização do melhor de que somos capazes. Mas o que é o melhor de que somos capazes? Na opinião de Aristóteles, a razão é a mais elevada faculdade do homem. Por isso mesmo, “o melhor (e o mais feliz) dos homens ocupa o máximo de seu tempo na mais pura atividade da razão, que é a teorização”. É uma visão demasiado professoral e inocente da felicidade: o hedonismo como uma conquista puramente teórica. Poucos no mundo real subscreveriam essa conclusão.

É discutível que Alexandre, o discípulo de Aristóteles, tenha buscado a concretização do melhor de que era capaz – infligindo sofrimento e morte a milhares sem conta ao longo do processo. No entanto, também se pode argumentar que Aristóteles tentou reprimir esses excessos morais com sua famosa doutrina de que a virtude está no meio.

Segundo essa doutrina, toda virtude se encontra no meio de dois extremos. Infelizmente, isso leva apenas à mediocridade ou aos artifícios verbais. Afirmar que o ato de dizer a verdade é meio caminho entre dizer uma mentira e corrigir uma falsidade é engenhoso, porém eticamente vão. (Aristóteles não postulou isso, mas teria tido necessidade de apresentar algo nessa linha, a fim de preencher a lacuna existente em seu argumento sobre o meio.)

Nos últimos anos de vida de Aristóteles, sua mulher, Pítia, morreu. O casamento obviamente se ajustava a ele, pois em seguida se casou com sua criada Herpilis, que viria a ser mãe de seu primeiro filho, Nicômaco. Em 323 a.C., no entanto, chegaram a Atenas notícias da morte de Alexandre na Babilônia, ao final de uma prolongada competição etílica com seus generais. Os atenienses há muito se ressentiam por estar sob o domínio dos incultos macedônios e, com a morte de Alexandre, deram vazão a seus sentimentos.

Aristóteles, que nascera na Macedônia e obtivera renome por ter sido tutor de seu mais competente rebento, tornou-se vítima dessa onda de antimacedonismo. Foi denunciado como ímpio numa acusação forjada, tendo seu acusador, o hierofante Eurímedon, citado o elogio que escrevera vinte anos antes, quando da morte de seu benfeitor, o eunuco Hérmias de Atarneus.

A multidão exigia vítimas, e Aristóteles teria sido sem dúvida condenado à morte. Mas ele não era feito do mesmo material de Sócrates, não tinha inclinação para o martírio. Sabiamente, abandonou a cidade para evitar que Atenas “assassinasse duas vezes a filosofia”.

Não foi uma decisão fácil no entanto – significava que teria que abandonar seu amado Liceu para sempre. Destituído de sua biblioteca e do acesso a seus arquivos de pesquisa, o velho filósofo isolou se então em uma propriedade herdada de sua mãe, em Cálcis, cidade localizada cinqüenta quilômetros ao norte de Atenas, na extensa ilha de Eubéia, no ponto em que ela se separa do continente por um estreito canal.

As águas desse canal sujeitam-se a um fenômeno inexplicável. Embora o Egeu virtualmente não sofra o efeito das marés, um fluxo rápido corre através do canal, mudando de direção, por razões que não se podem justificar, cerca de doze vezes por dia. Uma antiga lenda local sugere que Aristóteles passou dias quebrando a cabeça à cata de uma explicação para o fenômeno – e quando, pela primeira vez na vida, viu-se derrotado, pulou na água e se afogou.

Fontes históricas mais confiáveis registram que Aristóteles morreu em 322 a.C., aos sessenta e três anos, um ano depois de ter chegado a Cálcis. Diz-se que morreu de uma doença estomacal, embora uma fonte sustente que cometeu suicídio bebendo acônito, veneno extraído do ranúnculo. Na época, esse extrato era eventualmente usado como remédio, o que me sugere uma overdose acidental ou eutanásia auto-administrada, ao invés de simples suicídio. Embora seja perfeitamente possível que sua amargura por ter perdido o Liceu o tenha levado a não mais considerar a vida digna de ser vivida.

O testamento de Aristóteles começa com as palavras imortais: “Tudo ficará bem, mas caso alguma coisa aconteça…” Prossegue dando instruções para a educação dos filhos e alforria a seus escravos. Informa em seguida ao executor do testamento que, caso Herpilis deseje se casar novamente, “não deve ser entregue a alguém sem méritos”. O autor desse documento parece um homem essencialmente prosaico e decente, de caráter não afetado pelo fato de ser veículo do gênio supremo.

Termina seu testamento solicitando que parte do dinheiro por ele deixado fosse usado para erigir estátuas de Zeus e Palas Atena, em tamanho natural, em Estagira. Não consegui detectar sinal dessas estátuas quando finalmente cheguei às pedras dispersas e deslocadas pela chuva da antiga Estagira durante o final de um temporal, naquela tarde pouco feliz, há muitos anos na Grécia. Enquanto vagava pela encosta abandonada pelos deuses, pilhei-me recordando a visão aristotélica sobre a natureza da comédia, segundo a qual a comicidade era meramente uma forma de feiura indolor.

Paralisado pelo frio e diante de uma vista nada bela, compreendi que havia ainda um caminho a percorrer no pensamento de Aristóteles, pelo menos no que diz respeito à comicidade.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Aristóteles VIDA E OBRA - PARTE 2

Em 347 a.C. Platão morreu, deixando vago o cargo de líder da Academia. Meia dúzia dos colegas mais capacitados de Platão achavam que havia apenas um homem apto a ocupar cargo de tanto prestígio. Infelizmente, cada um tinha em mente um nome diferente (quase sempre o seu próprio).

E Aristóteles nesse ponto não era exceção. Para seu desgosto o cargo foi finalmente entregue a Espeusipo, primo de Platão, conhecido por ter sido tão mal-humorado que em determinada ocasião atirou seu cachorro em um poço por latir durante suas aulas. Também se diz que inventou um equipamento que permitia o transporte de lenha miúda e finalmente se auto-administrou eutanásia, após ter se tornado objeto de ridículo público durante uma discussão com Diógenes, o Cínico, na Ágora.

Como pensador, Espeusipo dificilmente podia ser comparado ao homem cujas doutrinas forneceriam os alicerces a todo o pensamento intelectual sério pelos dois milênios seguintes – e, quando de sua nomeação, Aristóteles, profundamente encolerizado, deixou Atenas em companhia de seu amigo Xenócrates (outro candidato desiludido).

Aristóteles atravessou o Egeu até Atarneus, onde passara a juventude. O lugar era então governado pelo eunuco Hérmias, mercenário grego que conseguira se apossar desse rincão da Ásia Menor. Em visita a Atenas, Hérmias ficara bastante impressionado com o que vira na Academia e recebeu Aristóteles de braços abertos. Hérmias estava decidido a transformar Atarneus em um centro de cultura grega, e Aristóteles começou a assessorá-lo sobre a melhor forma de conseguir seu objetivo.

A filosofia política de Aristóteles consiste principalmente no exame dos diferentes tipos de estado e na melhor forma de governá-los. Ele mostra profunda compreensão da política, o que o levou a adotar uma atitude pragmática, em contraste direto com o enfoque idealista de Platão. A República descreve como o filósofo-rei deveria governar sua utopia (que, como qualquer utopia, era de fato pouco mais que uma tirania). Aristóteles, ao contrário, descreve como governar um estado real – esboçando métodos efetivos de ação freqüentemente quase maquiavélicos.

Sabia como a política funcionava e sabia que devia ser efetiva para, no final, ter alguma utilidade. Isso não significa dizer que era vazio de ideais. Genericamente, acreditava que a finalidade do estado era produzir e apoiar uma classe de cavalheiros cultos como ele próprio, embora compreendesse que nem sempre isso era possível. Por exemplo, para conduzir uma tirania com sucesso, o governante devia se comportar como um tirano.

Nesse estado policial não haveria lugar para a elite cultural de Aristóteles. Contudo, em determinado ponto sugere que existe outra forma de conduzir uma tirania. O tirano pode assumir uma postura religiosa e adotar uma política moderada.

Alguns insinuam ter sido este o enfoque provavelmente adotado por Aristóteles como educador do tirano Hérmias. É muito pouco plausível, em minha opinião. No entanto, não estou sugerindo que Aristóteles teria defendido meios de instituir uma tirania drástica – com todas as atividades culturais proibidas, a população mantida sob medo e pobreza, trabalhando na construção de grandes monumentos públicos, com guerras periodicamente programadas, a fim de conservá-los alertas e mostrar-lhes a necessidade de um grande líder. (A análise de Aristóteles permanece relevante, do filósofo-rei de Platão a Saddam Hussein.)

Aristóteles desenvolveu sua filosofia política em seus últimos anos de vida, e na época em que educava Hérmias provavelmente aderiu às idéias expressas na República de Platão. Se assim foi, ele pode muito bem ter diplomaticamente modificado, nesse caso, a doutrina do filósofo-rei de Platão.

Não era necessário que um eunuco-tirano se tornasse filósofo, bastava certificar-se de que seguia os conselhos de um deles. Aproximando-se da meia idade e, apesar de seu dandismo, era considerado essencialmente o tipo de professor reservado. Foi então que, para surpresa de todos que o conheciam, se apaixonou. O objeto de sua afeição era uma jovem de nome Pítia, conhecida como integrante da casa de Hérmias.

Alguns afirmam que era irmã de Hérmias, outros que era sua irmã por adoção – embora algumas fontes, quase sempre confiáveis, afirmem que era originalmente sua concubina (algo como uma sinecura, considerando seu status sexual). Essas contradições sugerem que ela pode muito bem ter sido uma cortesã do palácio. Seria esse um caso precoce do professor apatetado apaixonado pelo Anjo Azul?

De todo modo, Pítia não era virgem quando Aristóteles se casou com ela, a julgar pelo seu pronunciamento: “Uma vez que se tornem efetivamente casados e chamem um ao outro marido e mulher, é totalmente errado que um homem ou uma mulher seja infiel” – ficando implícito que, antes disso, seria aceitável. Esse pronunciamento acha-se nas observações de Aristóteles sobre adultério, e parece que em assuntos tão pessoais ele tinha o hábito de generalizar a partir de sua própria experiência bastante limitada.

Em suas observações sobre o casamento, afirma que a melhor idade para se casar é trinta e sete anos para o homem e dezoito para a mulher – precisamente as idades que ele e Pítia tinham quando se
casaram. Independentemente do brilhantismo de Aristóteles, a imaginação não costumava ser seu ponto forte.

Tudo isso torna ainda mais irônico o fato de que, em sua Poética, o prosaico Aristóteles tenha forjado a mais poderosa elucidação da literatura jamais escrita – enquanto Platão, de longe o mais bem dotado poeticamente de todos os filósofos, decretava a expulsão dos poetas. (É de se perguntar o que Platão tentava esconder.)

Aristóteles tinha alto apreço pela poesia, afirmando que seu valor era maior que o da história, em virtude de ser mais filosófica. A história trata apenas de acontecimentos específicos, enquanto a poesia está mais próxima do universal. Nesse ponto, ele parece se contradizer, fazendo eco à visão de mundo de Platão. No entanto, sua célebre afirmativa de que a tragédia “suscita terror e piedade, purificando tais emoções através do desempenho dramático” permanece como um mergulho fundamental na comovente, porém problemática, experiência do teatro trágico.

De temperamento denso e essencialmente sério, Aristóteles considerava superficial a comédia. Em sua opinião, a comédia consiste na imitação de indivíduos inferiores, e a comicidade em uma mera forma de feiúra sem dor. A estética tenta apenas organizar a desordem estabelecida pela arte, e os teóricos da comédia via de regra terminam tentando se equilibrar em casca de banana. Aristóteles não é exceção – observando que “para começar, a comédia não era levada a sério”.

Não muito depois de seu casamento, Aristóteles fundou uma escola em Assos e três anos mais tarde mudou-se para Mitilene, na ilha de Lesbos, onde fundou outra escola. Sabe-se que, por essa época, Aristóteles estava profundamente interessado na classificação de plantas e animais. Um de seus refúgios preferidos para a caça de diferentes espécimes eram as praias do golfo Iérissos, cujas águas calmas e azuis sob o monte Olimpo são tão idílicas hoje quanto devem ter sido então. Na primavera as encostas se cobrem de um tapete de flores multicoloridas, e no tempo de Aristóteles deve ter havido lobos, javalis selvagens, linces e até mesmo ursos nas montanhas: o primeiro paraíso dos naturalistas para o primeiro naturalista.

Em suas obras sobre a natureza, Aristóteles tentou descobrir uma hierarquia de classes e espécies, mas foi sufocado pelo súbito volume de suas pesquisas. Ele estava convencido de que a natureza tinha uma finalidade e que cada traço específico de um animal existia para cumprir uma determinada função. “A natureza nada faz em vão”, observava. Bem mais de dois mil anos transcorreriam antes que a biologia fizesse qualquer progresso efetivo nesse campo, com a noção de Darwin sobre evolução.

Por essa época Aristóteles adquirira a reputação de líder intelectual de toda a Grécia. Filipe da Macedônia conquistara recentemente a Grécia, unindo pela primeira vez suas cidades-estados, sempre em guerra em um país soberano. Convidou-o então para ser tutor de seu jovem e indomável filho Alexandre. Como o pai de Aristóteles tinha sido médico pessoal e amigo do pai de Filipe, era considerado membro da família – e sentiu-se obrigado a aceitar essa régia oferta. Com relutância partiu para Pela, capital da Macedônia.

Hoje, Pela é pouco mais que um campo cheio de pedras, com alguns mosaicos de seixos e meia dúzia de colunas, à margem da movimentada estrada principal de Tessalônica em direção à fronteira oeste da Grécia. Um lugar surpreendentemente pouco marcante, considerando ter sido a primeira capital da Grécia antiga; mais tarde, depois que Alexandre, o Grande, lançou sua campanha megalomaníaca para conquistar o mundo, poderia ter reivindicado o título de primeira (e última) capital do mundo conhecido.

Foi ali, em 343 a.C., que um dos espíritos mais brilhantes que o mundo jamais conheceu aceitou o desafio de educar um dos maiores megalomaníacos que o mundo jamais conheceu. Aristóteles tinha quarenta e dois anos, e Alexandre treze – mas, não sem surpresa, foi Alexandre o vencedor indiscutível. O jovem e voluntarioso aluno não aprendeu absolutamente nada durante os três anos em que esteve sob a orientação de seu tutor. Pelo menos é o que se conta. Aristóteles estava convencido da superioridade dos gregos sobre todas as outras raças.

A seus olhos, o melhor líder seria um herói homérico, como Aquiles, cuja mente tivesse sido exposta aos últimos progressos da civilização grega; acreditava que a mente humana tinha capacidade para subjugar o mundo inteiro. Não se pode negar que Alexandre guardava estranha semelhança com essa imagem, mesmo que não tenha se tornado exatamente o que Aristóteles pudesse ter desejado. Mas podemos apenas especular sobre esse encontro de gigantes, a respeito do qual curiosamente sabe-se muito pouco.

O que se sabe é que, em pagamento por seus serviços, Aristóteles pediu a Filipe que reconstruísse sua cidade natal, Estagira, acidentalmente reduzida a escombros durante uma das recentes campanhas de Filipe na península Halkidiki. E sabe-se com certeza que, quando Alexandre se encontrava em sua grande expedição de conquista, recolheu plantas variadas desconhecidas e um zoológico de animais exóticos para que seu velho tutor os classificasse. A tradição da horticultura afirma que foi assim que os primeiros rododendros chegaram à Europa provenientes da Ásia central. Se isso é verdade, Aristóteles deve ter classificado essa espécie de maneira errônea: rododendro significa roseira em grego antigo.

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quarta-feira, 18 de julho de 2018

Aristóteles introdução

Aristóteles foi talvez o primeiro e o maior dos polígrafos. Sabe-se que escreveu acerca de tudo, do formato das conchas do mar à esterilidade, de especulações sobre a natureza da alma à meteorologia, poesia, arte e até mesmo sobre interpretação de sonhos. Diz-se que revolucionou todos os campos de conhecimento que tocou (com exceção da matemática, em que Platão e o pensamento platônico permaneceram absolutos). Acima de tudo, a ele se atribui a fundação da lógica.

Quando Aristóteles primeiro dividiu o conhecimento humano em categorias isoladas, possibilitou que nossa maneira de entender o mundo se desenvolvesse de forma sistemática. Nos séculos recentes, porém, esse conhecimento se expandiu a tal ponto que passou a ser seriamente prejudicado por essa categorização. Esses sistemas de pensamento permitiram que o conhecimento se desenvolvesse apenas ao longo de certos caminhos predeterminados, muitos dos quais corriam o risco de se esgotar.

Foi necessária uma abordagem radicalmente diferente. A conseqüência é o moderno mundo da ciência. O fato de que tenhamos demorado mais de vinte séculos para descobrir essas limitações no pensamento de Aristóteles serve apenas para demonstrar sua originalidade sem paralelo. Até mesmo a morte do pensamento aristotélico deu origem a muitas questões filosóficas fascinantes. Quantas mais dessas limitações temos ainda que descobrir? Qual o grau de perigo dessas falhas em nossa forma de pensar? E o que exatamente elas nos impedem de aprender?

VIDA E OBRA - PARTE 1


Em um promontório sobre a aldeia de Estagira, ao norte da Grécia, há uma estátua moderna de Aristóteles de muito pouca inspiração. Seu rosto sem expressão fixa o olhar por sobre as colinas arborizadas e cheias de protuberâncias, em direção ao mar Egeu azulado e distante. A figura do filósofo, em mármore alvíssimo, quase luminescente sob a luz do sol brilhante, ostenta uma toga decotada e sandálias, carregando na mão esquerda um pergaminho levemente danificado. (Diz-se que o dano foi causado por um caçador de souvenirs, um professor de filosofia argentino.) Gravadas na base, em grego, as palavras “Aristóteles, o estagirita”.

Aristóteles nasceu em Estagira em 384 a.C. Apesar da estátua, porém, ele não veio ao mundo na moderna cidade de Estagira. De acordo com o guia turístico, o acontecimento teve lugar na periferia da antiga Estagira, cujas ruínas ainda são visíveis. Depois do encontro frustrante com a estátua, parti em direção a elas. As ruínas ficavam logo abaixo na estrada, informou-me um batman que voltava da escola para casa. Com um floreio da capa negra de plástico indicou a estrada que levava ao litoral.

Depois de caminhar uma hora sob calor intenso, descendo a tortuosa estrada até a costa com trovões nefastos ecoando ao redor das montanhas rochosas, finalmente consegui uma carona até Stratoni, uma estranha mistura de refúgio abandonado à beira-mar e vila de mineração. A velha Estagira estava situada em algum lugar fora da estrada, um pouco mais ao norte, disse-me um carpinteiro que reparava a placa vazia do café fechado.

Logo descobriria que poucos carros passavam por aquela estrada em outubro. As tempestades de outono nessa região, quando finalmente irrompem, são às vezes muito intensas. Por uma hora abriguei-me embaixo de uma estreita saliência de pedra enquanto um aguaceiro torrencial caía em cascata sobre a encosta nua – sem qualquer sinal de ruínas ou veículos visíveis na intensa escuridão que pairava ao meu redor. Ensopado até os ossos, enfureci-me com a estátua que me levara à falsa Estagira.

Tratava-se de uma simples fraude. A moderna cidade de Estagira não pretendia de forma alguma ser conhecida como o local de nascimento de Aristóteles. Razão por que, analogamente, se poderia erigir uma estátua de Joana d'Arc em Nova Orleans Aristóteles nasceu em 384 a.C. na velha Estagira, na Macedônia grega. No século IV a.C., os antigos gregos consideravam a Macedônia mais ou menos como os franceses modernos tendem a considerar a Inglaterra e a América. Mas Estagira não passava de um arremedo de civilização – era uma pequena colônia grega fundada pela ilha egéia de Andros.

O pai de Aristóteles, Nicômaco, fora médico pessoal de Amintas, rei da Macedônia e avô de Alexandre, o Grande. Em conseqüência dessa ligação, que amadurecendo virou amizade, parece ter se tornado um homem rico, adquirindo propriedades ao redor de Estagira e em outras partes da Grécia. O jovem Aristóteles foi educado em ambiente de cultura médica, mas seu pai morreu ainda jovem, sendo ele então levado para Atarneus, cidade grega no litoral da Ásia Menor, onde foi educado por seu primo Próxenos.

Como muitos que herdam fortunas, logo começou a gastar afoitamente o dinheiro que recebera. Segundo um dos relatos, esbanjou em vinho, mulheres e música, terminando tão falido que se viu forçado a alistar-se no exército por algum tempo, após o que voltou a Estagira e começou a estudar medicina. Aos trinta anos, porém, desistiu de tudo e partiu para Atenas a fim de estudar na Academia dirigida por Platão, onde permaneceu por oito anos. Hagiógrafos do final da Idade Média, decididos a transformá-lo em personagem pio, tendem a ignorar ou desacreditar publicamente essas impensáveis calúnias.



Com toda a certeza, existe outra versão para o começo de sua idade adulta. De acordo com essa versão bem mais enfadonha (mas, deve-se admitir, bem mais digna de crédito), ele foi direto para a Academia, aos dezessete anos. No entanto, até mesmo algumas fontes que sustentam essa versão aludem a um breve interlúdio de vinho e Rosas. De toda forma, Aristóteles logo se estabeleceu para um período de estudo intenso na Academia, firmando-se rapidamente como a mente mais requintada de sua geração. A princípio um estudante, logo foi convidado a se tornar um dos colegas de Platão.

Parece que, no começo, venerava Platão. O certo é que absorveu toda a doutrina platônica ensinada na Academia, e sua própria filosofia se alicerçou solidamente em seus princípios. Mas Aristóteles era demasiado brilhante para ser mero seguidor de alguém, ainda que de Platão. Quando percebeu o que parecia uma contradição (ou, que nos perdoem os céus, uma falha) nas obras do mestre, sentiu-se intelectualmente obrigado a apontá-la.

Esse hábito logo começou a irritar Platão e, embora pareça que não tenham discutido, tudo leva a crer que os dois maiores espíritos da época julgaram político manter certa distância. Sabe-se que Platão se referia a Aristóteles como “o espírito sobre pernas” e chamava sua casa “a loja de leitura”. Esta última observação alude à famosa coleção de pergaminhos antigos de Aristóteles, que tinha por hábito comprar tantos pergaminhos raros de obras antigas quantos conseguisse tocar com as mãos e foi um dos primeiros cidadãos a possuir uma biblioteca particular.

O jovem acadêmico evidentemente recebia renda considerável das propriedades por ele herdadas, logo tornando-se conhecido em Atenas por suas maneiras finas e por seu estilo de vida sofisticado (ou, antes, erudito). Diz a tradição que era um indivíduo magro, de pernas longas, que tropeçava nos ss ao falar. Talvez para compensar esse problema passou a vestir-se de maneira elegante, adotando sempre a última moda em sandálias e togas e adornando os dedos com anéis de muito bom gosto.

Mesmo Platão, que não era pobre, invejava a biblioteca de Aristóteles. No entanto, apesar de seu estilo de vida refinado e confortável, suas primeiras obras (hoje perdidas) eram principalmente diálogos em que se discutia a futilidade básica da existência e as alegrias do porvir.

Aristóteles tinha uma inclinação natural para o aspecto prático e científico, o que o levou a analisar as idéias de Platão de maneira cada vez mais realista. Platão acreditava que o mundo particular que percebemos ao nosso redor é mera aparência.

A realidade última acha-se num distante mundo das idéias – que assemelham-se a “formas” ou “ideais”. Os objetos particulares do mundo que percebemos apenas se tornam reais através da participação nesse mundo definitivo das idéias. Dessa forma, um gato específico, assim como o preto que vejo deitado na cadeira, é um gato apenas porque participa da idéia (ou forma) definitiva de gato; e é preto apenas na medida em que participa da idéia (ou ideal) de pretume. A única realidade verdadeira acha-se além do mundo que percebemos – no campo definitivo das idéias.

Enquanto Platão focaliza o universo do ponto de vista essencialmente religioso, Aristóteles tende para o científico. Isso fez com que não se inclinasse a rejeitar o mundo ao nosso redor por considerá-lo irreal. Contudo, continuou a dividir as coisas em substâncias primárias e secundárias. Só que para ele as substâncias primárias eram os objetos específicos do mundo e as secundárias as idéias ou formas.

A princípio ele de fato hesitou ao tentar definir qual dessas substâncias era efetivamente a realidade definitiva, em parte por respeito a Platão. (Seu velho professor, afinal, fora o primeiro a apresentar esta concepção.) Mas pouco a pouco deixava-se cada vez mais convencer de que vivia no mundo real e afastou-se das conclusões de Platão.

Ao longo dos anos, Aristóteles virtualmente inverteu a filosofia de Platão – a despeito disso, suas teorias metafísicas permanecem reconhecidamente uma adaptação da teoria de Platão. Onde Platão via formas como idéias com existência independente, ele via formas (ou “universais”, como os chamava) como essências personificadas na substância do mundo, sem existência independente.

Aristóteles iria apresentar inúmeros argumentos devastadores contra a teoria das idéias de Platão – mas parece não ter avaliado que essas críticas eram igualmente devastadoras para sua própria teoria dos universais. Ninguém mais parecia perceber esse fato tampouco. Em conseqüência disso, foi basicamente sob a forma da doutrina modificada de Aristóteles que as teorias de Platão iriam se tornar a filosofia predominante no mundo medieval.

Felizmente, havia muitos pontos obscuros e contradições aparentes na obra de Aristóteles, que forneceram aos eruditos medievais munição para infindáveis controvérsias suscitadas por diferentes interpretações. Foram essas discussões sobre erros, heresias, falsas crenças cismáticas e falsas interpretações inspiradas no demônio que mantiveram viva a noção de filosofia, quando, para todos os fins e efeitos, a aventura como um todo estava morta (ou, para ser mais preciso, entrara em longo período de hibernação). Embora tenha sido sugerido que muitas dessas controvérsias surgiram de simples erros do clero – conseqüência da inserção por parte dos copistas medievais de suas próprias suposições no lugar de palavras ilegíveis nos originais comidos pelas traças.

Veja mais em Tudo sobre Aristóteles


Tudo sobre Aristóteles

Introdução e vida e obra - parte 1.

Vida e obra - parte 2.

Vida e obra - parte 3.

Vida e obra - parte 4.

Citações.

domingo, 15 de julho de 2018

Nietzsche - PRINCIPAIS CONCEITOS FILOSÓFICOS

A filosofia de Nietzsche foi escrita principalmente sob a forma de aforismos, e não é metódica. Sua atitude permanece, em geral, coerente, mas seu pensamento se desenvolve constantemente em diferentes direções. Isso significa que ele parece se contradizer ou se abrir a interpretações conflitantes. Sua filosofia é feita de intuições penetrantes e não constitui um sistema. No entanto, certas palavras e conceitos são bastante recorrentes em sua obra e neles se percebem os elementos de um sistema.

A vontade de potência


Este é o principal conceito da filosofia de Nietzsche. Ele o desenvolveu a partir de duas fontes principais: Schopenhauer e os gregos antigos. Schopenhauer adotara a ideia oriental de que o universo era guiado por uma grande força cega. Nietzsche reconheceu a força dessa ideia e a adaptou a termos humanos. Em seus estudos sobre os gregos antigos, descobriu que a força condutora de sua civilização era antes a busca de poder que de algo útil ou de benefício imediato.

Nietzsche concluiu que a humanidade era impelida por uma vontade de potência. O impulso básico de todos os nossos atos poderiam ser rastreados a partir dessa fonte única. Com frequência esse impulso se transformava em relação à sua expressão inicial, chegava a se perverter, mas estava sempre presente. O cristianismo surgiu para pregar exatamente o oposto, com as ideias de humildade, amor fraterno e compaixão. Mas, na realidade, não passava de uma perversão sutil da vontade de potência.

O cristianismo era uma religião oriunda da escravidão na era romana e jamais perdeu sua mentalidade de escravo. Essa era a vontade de potência dos escravos, ao invés da mais legítima vontade de potência dos poderosos. A vontade de potência de Nietzsche provou ser ferramenta de grande utilidade para ele quando começou a analisar a motivação humana. Atos que anteriormente pareciam nobres, ou louváveis, revelavam-se agora decadentes ou doentios. Mas Nietzsche deixou de responder a duas objeções principais.

Se a vontade de potência era o único instrumento de medida, como podiam os atos que em aparência não seguiam suas injunções imediatas ser outra coisa que não o mal? E dizer que o santo exercia sua vontade de potência sobre si mesmo era sem dúvida tornar o conceito tão flexível a ponto de convertê-lo em algo quase sem sentido. Em segundo lugar, sua noção da vontade de potência era circular: se a tentativa de Nietzsche de compreender o universo se inspirava na vontade de potência, certamente o conceito de vontade de potência se inspirava na tentativa de Nietzsche de compreender o universo.

Mas a última palavra sobre esse conceito penetrante porém perigoso permaneceria com Nietzsche: “A forma desse desejo de potência se modificou ao longo dos séculos, mas sua fonte é ainda o mesmo vulcão ... O que antes fazíamos ‘por amor a Deus’ fazemos agora por amor ao dinheiro ... É isso que no momento confere a mais elevada sensação de potência.”

O eterno retorno


Segundo Nietzsche, deveríamos agir como se a vida que vivemos continuasse a se repetir para sempre. Cada momento vivido terá de ser revivido repetidas vezes até a eternidade. Essa é em essência uma fábula de moral metafísica, mas Nietzsche insistiu em tratá-la como se nela acreditasse. Ele a descreveu como sua “fórmula para a grandeza de um ser humano”.

Essa ênfase suprema e incrivelmente romântica sobre a importância do momento pretende ser uma exortação a que vivamos nossas vidas ao máximo. Como ideia poética passageira, tem alguma força. Como ideia filosófica ou moral, é essencialmente superficial. Não resiste à reflexão. O clichê: “Viva a vida ao máximo” pelo menos significa alguma coisa, embora vaga. A ideia do eterno retorno, quando bem examinada, torna-se sem sentido. Temos a lembrança dessas vidas recorrentes? Se tivéssemos, certamente faríamos mudanças. Se não temos, elas são irrelevantes.

Mesmo uma imagem poética sedutora – e esta o é – deve ser mais substancial se pretende ser considerada mais do que mera poesia e usada como um princípio, como pretendia Nietzsche.

O super-homem


O super-homem de Nietzsche não tinha absolutamente nada a ver com a figura de capa que voa pelos céus das estórias em quadrinhos americanas. Talvez tivesse sido melhor se o herói de Nietzsche tivesse adotado alguns dos valores de seu homônimo das revistas. Clark Kent pelo menos tinha uma moral ingênua, que tentava impor num mundo rude e veloz, de bandidos e mocinhos. O super-homem de Nietzsche não tinha afinidade com assuntos constrangedores como moral. Sua única “moral” era a vontade de potência.

No entanto, curiosamente, as descrições de Nietzsche de seu super-homem mostram-no habitando um mundo tão repleto de simplicidade ingênua como qualquer outro das estórias em quadrinhos. O protótipo do super-homem de Nietzsche era Zaratustra – indivíduo extremamente sério e maçante, cujo comportamento exibia sintomas psicóticos perigosos. Admite-se que a história de Zaratustra foi concebida como parábola, mas parábola de quê? Parábola do comportamento. As parábolas que Cristo pregou no Sermão da Montanha parecem infantis e simples – mas, caso se reflita sobre elas, não são nem uma coisa nem outra. São profundas.

A parábola de Zaratustra é infantil e simples, e, caso se reflita sobre ela, continua a sê-lo. Apesar disso, sua mensagem tem grande alcance. Nietzsche prega nada menos que a destruição dos valores cristãos: cada indivíduo deve assumir total responsabilidade por suas próprias ações num mundo sem deus. Deve forjar seus próprios valores em plena liberdade. Não existe sanção, divina ou de outra natureza, para seus atos. Nietzsche previu que esta seria a condição do século XX. Infelizmente, ele também prescreveu a maneira de comportar-nos nessas condições. Os que seguissem suas receitas (as atitudes arcaicas e tediosas de Zaratustra) tornar-se-iam super-homens.

Lamentavelmente, o desenvolvimento do super-homem de Nietzsche superaria a figura da estória em quadrinhos que ele merecia ser. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche anuncia (através do seu herói): “O que é o macaco para o homem? Uma figura cômica ou um estorvo.

O homem parecerá o mesmo diante do super-homem.” Em outra parte, proclama: “O objetivo da humanidade não pode residir em seu fim, mas em seus espécimes mais elevados.” Nesse contexto, ele começa por, vaga e tortuosamente, vincular o super-homem a noções como “nobreza” e “sangue”. Contudo, não falava em termos raciais. Em determinado ponto refere-se “ao Programa de Gotha: uma prisão para burros” e em outra ocasião anuncia: “Quando falo de Platão, Pascal, Spinoza e Goethe, sei então que seu sangue circula no meu.” Um grego, um francês, um judeu português e um alemão – todos ancestrais sanguíneos do super-homem, segundo Nietzsche.


Mais sobre Nietzsche


Nietzsche sofreu duas mortes. Seu espírito morreu em 1889, seu corpo em 1900. Entre essas datas, sua obra adquiriu vida própria – lançando-o da obscuridade quase total para a eminência intelectual mundial. Nietzsche certamente consideraria isso não mais do que lhe era devido, mas sua fama excederia até mesmo suas próprias fantasias megalomaníacas. Estendeuse muito além do campo da filosofia – em grande parte pela grande atração que exercia sobre os escritores.

A lista de figuras relevantes do século XX influenciadas por Nietzsche inclui Yeats, Strindberg, O’Neill, Shaw, Rilke, Mann, Conrad, Freud e incontáveis figuras menores que se achavam simplesmente sufocadas por suas ideias. Tratava-se de uma filosofia diferente: possuía estilo e lucidez. Na verdade, era uma filosofia que se podia ler. E o fato de ela ser escrita em aforismos significava que também se tinha tempo para lê-la (ou trechos dela).

Esse era o problema. Atualmente muitos leem apenas trechos de Nietzsche. Ideias como “vontade de potência” e “super-homem” tornaram-se lugares-comuns e amplamente mal utilizadas. O super homem nietzschiano foi logo apropriado pelo lobby racista. Os antissemitas, depois os fascistas, começaram a pinçar pequenos trechos da obra de Nietzsche, independentemente do contexto. A imprecisão mesma da filosofia de Nietzsche passou a destruí-la.

A filosofia de Nietzsche foi seriamente desacreditada em consequência de sua grotesca utilização durante a primeira metade do século XIX. Por essa razão é quase impossível falar de muitas de suas ideias da forma que ele pretendeu (principalmente suas ideias sobre o superhomem, sobre “disciplina”, sobre “raça” e outras similares). A liberdade poética de boa parte de seus escritos deixou-as por demais vulneráveis a disfarces medonhos.

Felizmente ele também deixou suas observações sobre esses perigosos tópicos abertas ao ridículo, talvez a mais adequada reação da contemporaneidade. No entanto, vale a pena lembrar que Nietzsche formulou suas conclusões sobre o racismo, o antissemitismo e assuntos afins de maneira perfeitamente clara. Como ele próprio observa: “A homogeneização do homem europeu é o maior processo que não pode ser obstruído: dever-se-ia até mesmo acelerá-lo.” Quando os nazistas tentaram cooptá-lo como seu filósofo oficial, e Hitler beijou a mão de Elizabeth Föster-Nietzsche na porta do Arquivo Nietzsche em Weimar, foram os nazistas que penetraram os domínios da loucura maior, não a filosofia de Nietzsche.

CITAÇÕES


Aforismos e frases lapidares


Deus está morto.
Viva perigosamente.
Qual o melhor remédio? – Vitória.
Aurora, 571

Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos
Além do bem e do mal, 108

A melhor cura para o amor é ainda aquele remédio eterno: amor retribuído.
Aurora, Livro IV, 415

As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras.
Humano, demasiado humano,
vol.1, seção 9, 483

Aqueles que compreendem alguma coisa em sua dimensão mais profunda, raramente
permanecem fiéis a ela para sempre. Porque expuseram essas profundezas à clara luz do dia; e
o que lá se encontra não é em geral agradável de ver.
Humano, demasiado humano,
ibid., 489

Até os mais corajosos raramente têm a coragem para aquilo que realmente sabem.
Crepúsculo dos deuses:
Máximas e Setas, 2.1

Nesse ponto Nietzsche é tão destemido que demonstra não temer nem mesmo ser atingido por
seus próprios golpes:
Opiniões públicas, ócio privado.



Filosofar


O que se segue é um exemplo da alta qualidade do filosofar permanente de Nietzsche. Isola nossa noção de verdade e o que ela significa (utilizando no processo um argumento totalmente “verdadeiro”). Chega a algumas intuições originais, algumas especialmente oportunas em virtude do que fizemos, e continuamos a fazer, a nós mesmos e ao planeta em nome da ciência. As implicações de sua argumentação permanecem tão devastadoras quanto se mostravam então.


O que vem a ser esta vontade absoluta de verdade? Que sabeis vós a priori do caráter da existência para poder decidir que a desconfiança absoluta apresenta mais vantagens do que a absoluta confiança? E se ambas são necessárias, uma grande confiança e uma grande desconfiança, onde irá a ciência procurar essa convicção absoluta, essa fé que lhe serve de base e que diz que a verdade importa mais do que qualquer outra coisa, incluindo qualquer outra convicção? Essa convicção de base não se pode formar se o verdadeiro e o não verdadeiro se afirmaram sempre – e é esse o caso! – úteis tanto um como o outro.

Portanto, a fé na ciência, essa fé que existe de fato de uma maneira incontestável, só pode ter sua origem num cálculo utilitário; deve ter-se formado, pelo contrário, apesar do perigo e da inutilidade da “vontade da verdade”, apesar do perigo e da inutilidade da “verdade de qualquer maneira”, perigo e inutilidade que a vida demonstra sem cessar. “Querer a verdade” não significa, portanto, “não querer deixar-se enganar”, mas – e não há outra escolha – “não querer enganar os outros nem a si próprio”, o que nos leva para o domínio moral.

Perguntemo-nos seriamente com efeito: “Por que não queremos enganar?”, sobretudo se parece – é bem esse o caso! – que a vida seja vivida em vista da aparência, quero dizer que tenha como objetivo extraviar, iludir, dissimular, ofuscar, cegar, e se, por outro lado, de fato, ela se mostrou sempre sob a sua melhor face do lado dos menos escrupulosos trapaceiros. Interpretado timidamente, esse desejo de não enganar pode passar por um quixotismo, uma pequena sem-razão de entusiasta; mas é também possível que seja alguma coisa pior: um princípio destruidor, inimigo da vida “Querer o verdadeiro” poderia ser, secretamente, querer a morte.

De modo que o porquê da ciência se liga a um problema moral: por que, de uma maneira geral, qualquer moral, quando a vida, a natureza, a história são imorais? Mas ter-se-á desde já compreendido onde quero chegar: é numa fé metafísica que assenta ainda a nossa fé na ciência; pesquisadores do conhecimento, ímpios inimigos da metafísica, nós próprios, ainda ateamos fogo na fogueira acesa por milenária crença, pela fé cristã, crença que foi também a de Platão, para quem o verdadeiro se identifica com Deus e toda a verdade é divina.
Gaia ciência, livro V, seção 344

Segue-se uma das prescrições mais sóbrias e, em mais de um aspecto, mais reveladoras de Nietzsche para a super-humanidade.

O que nos torna heroicos? — Ir ao mesmo tempo para além da sua maior dor e da sua maior esperança.
Em que tens fé? — Nisto: em que é necessário determinar de novo o peso de todas as coisas.
O que diz a tua consciência? — Deves transformar-te no homem que és.
Onde se encontra o teu maior perigo? — Na piedade.
O que amas nos outros? — As minhas esperanças.
A quem chamas mau? — Àquele que quer envergonhar sempre.
Que encontras de mais humano? — Poupar a vergonha a alguém.
Qual é a marca da liberdade realizada — Não mais corar de si próprio.
A gaia ciência, livro III,
268-75


Pensar perigosamente


De tudo o que se escreve, aprecio somente o que alguém escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito. Quero ter duendes a meu redor, porque sou corajoso. A coragem que afugenta os fantasmas cria seus próprios duendes: a coragem quer rir. Eu já não sinto do mesmo modo que vós: essa nuvem que vejo debaixo de mim, essa coisa negra e pesada é, justamente, a vossa nuvem de temporal.

Vós olhais para cima, quando aspirais a elevar-vos. E eu olho para baixo, porque já me elevei. Quem de vós pode, ao mesmo tempo, rir e sentir-se elevado? Aquele que sobe ao monte mais alto, esse ri-se de todas as tragédias, falsas ou verdadeiras. Corajosos, despreocupados, escarninhos, violentos assim nos quer a sabedoria: ela é mulher e ama somente quem é guerreiro.
Assim falou Zaratustra, I,
Do ler e escrever

“O homem é mau”– assim falaram, para meu consolo, todos os sábios. Oxalá isso fosse verdade ainda hoje! Pois o mal é a melhor força do homem. “O homem deve tornar-se melhor e pior”– isto ensino eu. O pior que tudo é necessário para o maior bem do super-homem. Sofrer e tomar sobre si os pecados do homem talvez fosse bom para aquele pregador do povinho. Eu, porém, me rejubilo com o grande pecado como a minha grande consolação.
Assim falou Zaratustra, V,
Do homem superior, 5

O super-homem Zaratustra canta as alegrias do ardor solitário e a perspectiva de ser capaz de fazer tudo de novo. (“O anel do retorno” refere-se à doutrina do eterno retorno de Nietzsche, que propõe que nossas vidas se repetem eternamente.) Desnecessário dizer, esse trecho involuntariamente hilariante e autorrevelador foi escrito visando a uma plateia préfreudiana.


Se algum dia bebi, a largos sorvos, do espumante jarro, rico de especiarias, em que todas as
coisas estão bem misturadas –

Se minha mão, algum dia, deitou o mais distante no mais próximo e fogo no espírito e prazer na dor e o que há de mais malvado no que há de mais bondoso –
Se sou eu mesmo um grão daquele sal redentor que faz as coisas, no jarro, misturarem-se bem –
Pois há um sal que liga o bem com o mal; e também o pior dos males é especiaria digna de
aromatizar e, por fim, fazer transbordar a espuma –
Oh, como não deveria eu almejar a eternidade e o nupcial anel dos anéis – o anel do retorno?
Nunca encontrei, ainda, a mulher da qual desejaria ter filhos, a não ser esta mulher que amo: pois eu te amo, ó eternidade!
Pois eu te amo, ó eternidade!
Assim falou Zaratustra, III,
Os sete selos, 4

Quando desce de regiões (e linguagem) tão grandiosas, Nietzsche demonstra que é capaz dos argumentos mais sucintos e penetrantes.

A “coisa-em-si” é um conceito sem sentido. Se eu remover todas as relações, todas as “propriedades”, todas as “atividades” de alguma coisa, nada resta. A concretude só foi inventada por nós para se adequar às exigências da lógica. Em outras palavras, com o objetivo de definir, de comunicar. (A fim de juntar a multiplicidade das relações, das propriedades, das atividades.)
Vontade de potência, 558

“Verdade”: segundo minha maneira de pensar, não significa necessariamente a antítese do erro, porém nos casos mais fundamentais apenas a postura de vários erros em relação uns com os outros. Talvez um seja mais antigo, mais profundo que outro, inextirpável até, na medida em que a entidade orgânica das nossas espécies não poderia viver sem ele.

Outros erros não nos tiranizam dessa forma como condições de vida, mas ao contrário, quando comparados a esses “tiranos”, podem ser isolados e “refutados”. Uma hipótese irrefutável – por que deveria por essa razão ser “verdadeira”? Essa proposição pode perfeitamente insultar os lógicos, que colocam as suas limitações como as limitações das coisas. Mas há muito tempo declarei guerra a esse otimismo dos lógicos.
Vontade de potência, 535

Surpreendentemente, tendo em vista seus ataques ao cristianismo, Nietzsche também afirma:

A continuação do ideal cristão é altamente desejável – mesmo para aqueles ideais que querem se colocar ao lado dele e talvez acima dele – eles precisam de oponentes, oponentes fortes, se pretenderem tornar-se fortes.
Vontade de potência, 361


Nietzsche VIDA E OBRA - PARTE 4

Após hibernar em Nice, Turim, Roma ou Menton, Nietzsche passava os verões “a 1.500 metros acima do mundo e mais acima ainda dos seres humanos” em Sils Maria, uma aldeia à beira de um lago no Engadine suíço. Hoje, Sils Maria é um pequeno e elegante balneário (a apenas doze quilômetros da estrada para Saint-Moritz), mas ainda se pode ver o quarto simples onde Nietzsche costumava ficar e instalar seu baú de remédios. Ali as montanhas se levantam íngremes das margens do lago em direção ao maciço Bernina, de 4.000 metros de altitude, coberto de neve, que marca a fronteira com a Itália.

Atrás da casa, pode-se enveredar pelas trilhas remotas subindo a encosta da montanha, por onde Nietzsche costumava caminhar e refletir sobre sua filosofia, fazendo pausas para anotar suas conclusões em seus cadernos ao lado de um solitário rochedo escarpado ou uma corrente espumante.

Parte da atmosfera dessa região – os picos remotos, as vistas ondulantes, o sentido de grandeza isolada – penetra o tom de seus escritos. Quando se vê onde Nietzsche desenvolveu grande parte de suas reflexões, alguns de seus pecados e virtudes tornam-se mais compreensíveis.

Na maior parte do tempo, Nietzsche levava uma vida de extremo isolamento, alugando quartos baratos, trabalhando sem parar e comendo em restaurantes de preços módicos – ao mesmo tempo que medicava, da melhor maneira possível, suas alucinantes dores de cabeça e as doenças que o debilitavam. Não era incomum que passasse noites inteiras com ânsia de vômito e se sentisse inválido por três ou quatro dias da semana. Além disso, esse estado de coisas rapidamente se tornou permanente.

No entanto, a cada ano produzia um livro de admirável qualidade. Obras como Aurora, A gaia ciência e Além do bem e do mal contêm críticas soberbas da civilização ocidental, de seus valores e sua psicologia, bem como de seus dilemas. Seu estilo permanece claro e expressa um mínimo de ideias incoerentes. Pode não ter sido filosofia sistemática, mas era com certeza um filosofar do mais alto nível.

Muitos (na realidade, a maioria) dos valores fundamentais do homem e da civilização ocidentais foram testados e considerados deficientes. Conforme ele mesmo manifestou em suas anotações inéditas: “O cristianismo chega ao fim – destruído por sua própria moralidade (que não pode ser substituída), uma moralidade que acaba por se ver obrigada a negar até mesmo a existência do seu próprio Deus.

O senso de veracidade, desenvolvido ao máximo pelo cristianismo, deixa-se contaminar pelas falsidades e pela desonestidade de todas as interpretações cristãs do mundo e da história. Salta de ‘Deus é a verdade’ para ‘Tudo é falso’.” Nunca houve melhor trabalho de demolição – embora boa parte do trabalho de demolição puramente filosófica já tivesse sido feito havia mais de um século por Hume. (Mas era necessário fazê-lo mais uma vez por conta do ressurgimento dos sistemas metafísicos alemães.)

Durante a década de 1880, Nietzsche continuou a trabalhar solitariamente, desconhecido e não lido, pressionando-se de maneira cada vez mais cruel à medida que considerava sua solidão extrema e sua falta de reconhecimento cada vez mais insuportáveis. Em 1888, o erudito judeu dinamarquês George Brandes começou a fazer palestras sobre a filosofia de Nietzsche na Universidade de Copenhague. Infelizmente, já era tarde. Em 1888 concluiu nada menos que quatro livros, e a loucura começou a aparecer. Ele era um grande espírito e sabia disso: era imperativo que o mundo o soubesse também.

Em Ecce homo ele descreve Assim falou Zaratustra como “o mais elevado e mais profundo livro existente” – declaração que chega aos limites dos altímetros críticos, assim como da ingenuidade. Como se isso não bastasse, seguem-se capítulos intitulados “Por que sou tão sábio”, “Por que escrevo tão bons livros” e “Por que sou um Destino”, nos quais dá conselhos a respeito do álcool, endossa o cacau sem gordura e elogia seus hábitos intestinais.

O estilo bombástico e a autoabsorção de Zaratustra reapareciam com uma vingança – a mania. Em janeiro de 1889 chegou o fim. Teve um desmaio enquanto caminhava pela rua em Turim e, em lágrimas, lançou os braços ao redor do pescoço de um cavalo que acabara de ser chicoteado pelo condutor de uma carruagem. Nietzsche foi levado a seu quarto, onde escreveu cartões postais para Cosima Wagner (“Eu te amo, Ariadne”), para o rei da Itália (“Meu querido Umberto ... estou mandando fuzilar todos os antissemitas”) e para Jacob Burckhardt (assinando “Dioniso”). Burckhardt
entendeu o que acontecia e passou o cartão a um dos admiradores mais próximos de Nietzsche, que foi imediatamente recolhê-lo.

Nietzsche estava então clinicamente louco e jamais se recuperaria. Quase com certeza sua doença teria sido incurável mesmo hoje. Foi provocada por excesso de trabalho, solidão e sofrimento – mas a causa principal foi sífilis, já em estágio terciário, que aparentemente acarreta “paralisia mental”. Após curto período em um asilo, Nietzsche foi liberado e entregue aos cuidados da mãe. Era inofensivo agora, boa parte do tempo em estado catatônico, que o reduzia à condição quase vegetal. Em seus momentos mais lúcidos, parecia ter vaga ideia de sua vida passada. Quando lhe davam um livro, observava: “Não escrevi eu também bons livros?”

Após a morte da mãe, em 1897, foi cuidado por sua irmã Elizabeth Förster-Nietzsche. Era a última pessoa que deveria ter sido encarregada dessa tarefa. Irmã mais nova de Nietzsche, Elizabeth era casada com Bernard Förster, professor fracassado que se tornara notório antissemita. Nietzsche o desprezava tanto como homem quanto por suas ideias. Förster tinha organizado uma colônia da raça ariana chamada Nueva Germania, no Paraguai, utilizando pequenos fazendeiros pobres da Saxônia (Os remanescentes da Nueva Germania ainda existem no Paraguai, onde a “raça superior” vive hoje em geral nas mesmas condições dos índios locais, virtualmente sem distinção, exceto pelos cabelos louros.)

Ao voltar à Alemanha para cuidar do irmão louco, Elizabeth decidiu transformá-lo numa grande figura. Levou-o para Weimar, por conta de suas elevadas associações culturais com Goethe e Schiller, a fim de organizar um arquivo Nietzsche. Em seguida, começou a adulterar as anotações inéditas do irmão, inserindo nelas ideias antissemitas e observações elogiosas sobre si própria. Essas anotações foram publicadas com o título de Vontade de potência, texto desde então depurado de todo esse lixo pelo grande especialista nietzschiano Walter Kaufmann, para chegar ao que é incontestavelmente a maior obra de Nietzsche.

Ele começa por declarar a condição da era vindoura: “O ceticismo acerca da moralidade é decisivo. O fim da interpretação moral do mundo, não mais sancionada depois de ter tentado escapar para além do limite metafísico, conduz ao niilismo. ‘Tudo carece de sentido’ (a impossibilidade de defesa da interpretação ‘cristã’ do mundo, na qual se investiu enorme parcela de energia, desperta a suspeita de que todas as interpretações do mundo são falsas).”

Isso parece tornar a filosofia como um todo supérflua, mas Nietzsche continua, agora de maneira divertida: “Todo o aparato do conhecimento é um aparato de abstração e simplificação – direcionado não ao conhecimento, mas à posse das coisas: ‘fim’ e ‘meios’ estão tão distantes de sua natureza essencial como estão os ‘conceitos’.” Prossegue definindo nosso conhecimento: “Todos os nossos órgãos do conhecimento e nossos sentidos são desenvolvidos tão-somente como meios de preservação e crescimento.

A confiança na razão e em suas categorias, na dialética, a valorização da lógica, portanto, somente comprova sua utilidade para a vida, comprovada pela experiência – não que alguma coisa seja verdadeira.” Suas observações psicológicas permanecem perspicazes como sempre, só que agora conduzem de aperçus a intuições fundamentais (e perigosas). “O prazer surge quando há o sentimento de potência.

A felicidade repousa na consciência triunfante de potência e vitória. O progresso se baseia no fortalecimento da espécie, na aptidão para o uso enérgico da vontade. Todo o resto é um perigoso mal-entendido.” Nietzsche finalmente chegou ao século XX, cuja natureza ele previra tão bem. Pequena e patética figura pálida com enorme bigode militar, com pouca ou nenhuma ideia de quem era ou de onde estava, terminou morrendo a 25 de agosto de 1900. Nesse momento, suas obras começavam a conquistar a aclamação que aguardara por toda a sua vida, e sua fama rapidamente se difundiu.

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