sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Kant, citações

O trecho a seguir faz parte da abertura da Crítica da razão pura, onde Kant se prepara para lançar os alicerces de sua filosofia. Como se pode inferir da segunda frase, Kant começa da forma como pretende continuar. Insista em transpor essa cilada facilmente localizável e logo conhecerá um estado de espírito que com agilidade transcende a dificuldade do que ela transmite.

Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento
começa pela experiência; efetivamente, que outra coisa
poderia despertar e pôr em ação a nossa capacidade de
conhecer senão os objetos que afetam os sentidos e que, por
um lado, originam por si mesmos as representações e, por
outro lado, põem em movimento a nossa faculdade
intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las,
transformando assim a matéria bruta das impressões
sensíveis num conhecimento que se denomina experiência?
Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede
em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento
tem o seu início.
Se, porém, todo o conhecimento se inicia com a
experiência, isso não prova que todo ele derive da
experiência. Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento
por experiência ser um composto do que recebemos através
das impressões sensíveis e daquilo que a nossa própria
capacidade de conhecer (apenas posta em ação por
impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse
que não distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa
atenção não despertar por um longo exercício que nos torne
aptos a separá-los.
Crítica da razão pura, Introdução, Parte 1

Ele prossegue em sua argumentação:

Haverá um conhecimento assim, independente da experiência e de todas as impressões dos sentidos? Denomina-se a priori esse conhecimento e distingue-se do empírico, cuja origem é a posteriori, ou seja, na experiência. Esta expressão não é, contudo, ainda suficientemente definida para designar de um modo conveniente todo o sentido da questão apresentada. Na verdade, costuma dizerse de alguns conhecimentos, provenientes de fontes da experiência, que deles somos capazes ou os possuímos a priori porque os não derivamos imediatamente da experiência, mas de uma regra geral, que todavia fomos buscar à experiência.

Assim, diz-se de alguém, que minou os alicerces da sua casa, que podia saber a priori que ela havia de ruir, isto é, que não deveria esperar, para saber pela experiência, o real desmoronamento. Contudo, não poderia sabê-lo totalmente a priori, pois era necessário ter-lhe sido revelado anteriormente, pela experiência, que os corpos são pesados e caem quando lhes é retirado o sustentáculo.
Ibid., Introdução, Parte 1

Kant prossegue para explicar:

Por esta razão designaremos, doravante, por juízos a priori não aqueles que não dependem desta ou daquela experiência, mas aqueles em que se verifica absoluta independência de toda e qualquer experiência. Dos conhecimentos a priori, são puros aqueles em que nada de empírico se mistura. Assim, por exemplo, a proposição, segundo a qual toda a mudança tem uma causa, é uma proposição a priori, mas não é pura, porque a mudança é um conceito que só pode extrair-se da experiência.
Ibid., Introdução, Parte 1

A argumentação avança e o enredo se adensa, Esta oportunidade extremamente rara de acompanhar um dos espíritos mais requintados da história na medida em que vai criando na sua forma original não deve ser perdida. Pretender chegar a essas alturas de maneira fácil invalida todo o objetivo do exercício:

Necessitamos agora de um critério pelo qual possamos distinguir seguramente um conhecimento puro de um conhecimento empírico. E verdade que a experiência nos ensina que algo é constituído desta ou daquela maneira, mas não que não possa sê-lo diferentemente. Em primeiro lugar, se encontrarmos uma proposição que apenas se possa pensar como necessária, estamos em presença de um juízo a priori; se, além disso, essa proposição não for derivada de nenhuma outra, que por seu turno tenha o valor de uma proposição necessária, então é absolutamente a priori.

Em segundo lugar, a experiência não concede nunca aos seus juízos uma universalidade verdadeira e rigorosa, apenas universalidade suposta e comparativa (por indução), de tal modo que, em verdade, antes se deveria dizer: tanto quanto até agora nos foi dado verificar, não se encontram exceções a esta ou àquela regra. Portanto, se um juízo é pensado com rigorosa universalidade, quer dizer, de tal modo que, nenhuma exceção se admite como possível, não é derivado da experiência, mas é absolutamente válido a priori. A universalidade empírica é, assim, uma extensão arbitrária da validade, em que se transfere para a totalidade dos casos a validade da maioria, como, por exemplo, na seguinte proposição: todos os corpos são pesados.

Em contrapartida, sempre que a um juízo pertence, essencialmente, uma rigorosa universalidade, este juízo provém de uma fonte particular do conhecimento, a saber, de uma faculdade de conhecimento a priori. Necessidade e rigorosa universalidade são pois os sinais seguros de um conhecimento a priori e são inseparáveis uma da outra. Porém, como na prática certas vezes é mais fácil de mostrar a limitação empírica do que a contingência dos juízos e outras vezes mais conveniente mostrar a universalidade ilimitada, que atribuímos a um juízo, do que a sua necessidade, é aconselhável servirmo-nos, separadamente, dos dois critérios, cada um dos quais é de per si infalível.
Ibid., Introdução, Parte 2

Kant nesse instante elabora:

É fácil mostrar que há realmente no conhecimento humano juízos necessários e universais, no mais rigoroso sentido, ou seja, juízos puros a priori. Se quisermos um exemplo, extraído das ciências, basta volver os olhos para todos os juízos da matemática; se quisermos um exemplo, tirado do uso mais comum do entendimento, pode servir-nos a proposição segundo a qual todas as mudanças têm que ter uma causa. Neste último, o conceito de uma causa contém, tão manifestamente, o conceito de uma ligação necessária com um efeito e uma rigorosa universalidade da regra, que esse conceito de causa totalmente se perderia, se quiséssemos derivá-lo, como Hume o fez, de uma associação freqüente do fato atual com o fato precedente e de um hábito daí resultante (de uma necessidade, portanto, apenas subjetiva) de ligar entre si representações. Poder-se-ia também demonstrar, sem haver necessidade de recorrer a exemplos semelhantes, a realidade de princípios puros a priori no nosso conhecimento, que estes princípios são imprescindíveis para a própria possibilidade da experiência, por conseguinte, expor a sua necessidade a priori.

Pois onde iria a própria experiência buscar a certeza, se todas as regras, segundo as quais progride, fossem continuamente empíricas e, portanto, contingentes? Seria difícil, por causa disso, dar a essas regras o valor de primeiros princípios. Aqui podemo-nos bastar com ter exposto, a título de fato, juntamente com os seus critérios, o uso puro da nossa capacidade de conhecer. Todavia não é apenas nos juízos, mas ainda em alguns conceitos, que se revela uma origem a priori.

Eliminai, pouco a pouco, do vosso conceito de experiência de um corpo tudo o que nele é empírico, a cor, a rugosidade ou maciez, o peso, a própria impenetrabilidade; restará, por fim, o espaço que esse corpo (agora totalmente desaparecido) ocupava e que não podereis eliminar. De igual modo, se eliminardes do vosso conceito empírico de qualquer objeto, seja ele corporal ou não, todas as qualidades que a experiência vos ensinou, não poderíeis contudo retirar lhe aquelas pelas quais o pensais como substância ou como inerente a uma substância (embora este conceito contenha mais determinações do que o conceito de um objeto em geral). Obrigados pela necessidade com que este conceito se vos impõe, tereis de admitir que tem a sua sede a priori na nossa faculdade de conhecer.
Ibid., Introdução, Parte 2

Nesse ponto Kant explica a noção de Tempo segundo a sua filosofia:

O tempo não possui realidade objetiva; não é um acidente, nem uma substância, e nem uma relação: é uma condição puramente subjetiva, necessária por conta da natureza do espírito humano, que coordena todas as nossas sensibilidades mediante determinada lei, e é pura intuição. Coordenamos da mesma forma substâncias e acidentes, segundo a simultaneidade e a seqüência, através apenas do conceito de tempo. De Mundi Sensibilis atque intelligibilis forma et principus, 3, 14.

Kant passa, nesse momento, a distinguir entre diferentes tipos de felicidade:

Se alguém só é feliz quando consegue satisfazer um desejo, o sentimento que faz com que goze prazeres tão grandes, sem que necessite de grandes habilidades para isso, é certamente assunto não trivial. Os gordos, cujos artistas favoritos são seus cozinheiros e cujas obras-primas repousam em seus celeiros, regozijam-se em suas obscenidades comuns e em suas observações vulgares tanto quanto as almas mais nobres desfrutam de seus objetivos mais requintados.

Um indivíduo indolente que adore que lhe leiam livros em voz alta porque gosta de adormecer dessa forma, o empresário que considera todos os prazeres uma distração que o desvia de lutar por seus lucros em um negócio rendoso, alguém que adora o sexo oposto pelo simples prazer de possuí-lo e nada mais, o caçador sagaz, seja ele mero caçador de moscas, como o imperador romano

Domiciano, ou de animais ferozes como A — todos têm sentimentos que os fazem experimentar prazer à sua própria maneira, sem que sintam inveja de outros ou sejam até mesmo capazes de imaginar outros prazeres. Esse tipo de sentimento, que pode ocorrer sem qualquer pensamento, eu desconsiderarei por completo.

Sua argumentação prossegue:

O sentimento requintado, que passo a considerar, é em grande parte de dois tipos: o sentimento do sublime e o do belo. Cada um deles nos dá prazer, mas de formas diferentes. A visão do pico de uma montanha coberto de neve elevando-se sobre as nuvens, a descrição de uma tempestade violenta ou a representação de Milton do reino do inferno - cada um deles nos proporciona alegria, porém mesclada com o terror. Por outro lado, a visão de prados cobertos de flores, de vales com arroios sinuosos e rebanhos pastando, a descrição do Elísio, ou o relato de Homero sobre o cinturão de Vênus, também nos dão uma sensação agradável, mas repleta de alegria e felicidade. Para sentir a primeira sensação temos que ter o sentimento do sublime, mas a fim de experimentar a última há que se ter o sentimento do belo. "Do belo e do sublime", Seção 1, parágrafos 2 & 3

Um exemplo raro de poesia kantiana. Foi escrita em 1782, por ocasião da morte do pastor Lilienthal, que casara os pais de Kant:

Was auf das Lebenfolgt deckt tiefe Finsterniss; Was uns zu thun gebuhrt, dess sind wis nur gewiss. O que vem depois da vida se esconde na escuridão profunda; O que se espera que façamos, somos os únicos que sabemos.

O texto que se segue aproxima-se bastante da explicação para a popularidade das aulas de geografia que Kant dava aos cidadãos de Königsberg. Foi escrito, no século XIX, pelo dr. J.H. Stirling, de nacionalidade britânica, membro da Sociedade Filosófica de Berlim:

[Nas aulas de geografia de Kant] ele não pode deixar de se referir a alguns dos fatos mais interessantes que o influenciaram ... Os negros nascem de cor branca, excetuando um círculo em torno do umbigo. O íbis morre tão logo deixa o Egito. O leão é tão nobre que é incapaz de tocar uma mulher com a pata ... A água no Cabo é tão pura que permanece doce quando trazida à Europa. Se fizer um copo de chifre de rinoceronte, qualquer veneno poderá rachá-lo ... Nas Ilhas Canárias existe a árvore da vida que nunca apodrece, seja no solo ou na água.

Há um molusco na Itália que fornece tanta luz que se pode ler perto dela. No Languedoc acontece uma primavera tão quente que chega a chocar ovos ... Os animais ferozes só comem negros em Gâmbia e deixam os europeus em paz. Os negros na América adoram carne de cachorro e todos os cães latem para eles.

De acordo com o dr. Stirling, essas opiniões eram "todas apresentadas com gravidade".

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Kant, considerações importantes

Pergunta: De que trata a Crítica da razão pura?
Resposta: De metafísica.

P: O que é exatamente metafísica? R: Essa palavra começou como um erro e acabou por ser considerada um erro. Nesse meio tempo, foi o principal tópico da filosofia.

P: Isso ainda não responde a pergunta. O que significa metafísica exatamente? R: Nada, segundo a maioria dos filósofos modernos.

P: Bem, o que significava de início? R: Essa palavra foi primeiro usada para fazer referência a certas obras filosóficas de Aristóteles, as que se situavam depois de sua grande obra na área da física, em suas obras reunidas, e que se tornaram conhecidas como "além da física" - que em grego se dizia "meta-física".

P: Mas isso ainda não me diz o que ela é. R: Nessas obras "além da física", Aristóteles dedicou-se à "ciência das coisas transcendendo o que é físico ou natural".

P: E o que quer dizer isso? R: É a ciência que trata dos primeiros princípios teóricos além e acima do mundo físico. Esses são os princípios que governam nosso conhecimento daquele mesmo mundo físico. Em outras palavras, a metafísica diz respeito a tudo que transcende o mundo físico que experimentamos.

P: Mas como sabemos que existe alguma coisa além do mundo físico que experimentamos? R: Não sabemos. Razão pela qual a maioria dos filósofos modernos rejeita a metafísica como um erro.

P: Mas Kant não o fez? R: Kant estava decidido a criar uma nova metafísica. Antes dele, Hume tinha chegado em grande parte à mesma conclusão desses filósofos modernos. Hume pensou que tivesse destruído a possibilidade da metafísica.

P: Como? R: Duvidando de tudo que não pudesse confirmar mediante sua própria experiência. Esse ceticismo extremo excluía tudo em que a humanidade acreditara através dos séculos, mas que jamais experimentara de fato.

P: Por exemplo? R: Deus, por exemplo.

P: Mas o que Hume disse não parecia fazer muita diferença. As pessoas continuaram a acreditar em Deus. R: Sim, mas compreende-se cada vez mais que isso acontecia por conta de um impulso da fé e não como resultado de qualquer experiência direta ou de argumentação racional.

P: Então a "contestação" da metafísica por parte de Hume não fez qualquer diferença? R: Na realidade, fez grande diferença. Principalmente para os cientistas e os filósofos.

P: Como? R: Mediante a exclusão de tudo, à exceção daquilo que podemos comprovar através da experiência, Hume eliminou muito mais que Deus. Ele destruiu, a causalidade, p que era muito mais importante para os cientistas e para os filósofos.

P: Como? R: Segundo Hume, tudo o que sabemos da experiência é que um evento se segue a outro. Não podemos jamais saber se um evento causa o outro. Não podemos ir além da nossa experiência para afirmar isso. Na realidade, jamais experimentamos algum evento causando outro - apenas um evento se seguindo a outro.

P: Então? R: Isso atinge o âmago de todo o nosso conhecimento científico. De acordo com Hume a ciência baseada na causalidade é metafísica- não empírica. Não pode nunca ser comprovada. E a comprovação é a base de nosso conhecimento. Da mesma forma, a filosofia. Segundo Hume, jamais poderemos provar as afirmações da filosofia, a menos que elas sejam resultado de experiência direta.

P: Como por exemplo? R: Assim como na afirmação: "Esta maçã é verde."

P: Mas isso significa que a filosofia praticamente nada pode dizer. R: Exatamente. E essa é a dificuldade extrema que Kant tentou superar em sua filosofia.

P: De que maneira? R: Ele tentou mostrar que, apesar do ceticismo devastador de Hume, ainda era possível construir uma metafísica, que seria a base real de uma forma de conhecimento universal e logicamente necessária — que permaneceria impermeável ao ceticismo de Hume. Kant a estabeleceu pela primeira vez em sua Crítica da razão pura.

P: Então a metafísica de Kant era uma tentativa de estabelecer algum tipo de ciência definitiva - que garantisse a verdade do nosso conhecimento? R: Exatamente.

P: E como ele chegou a isso? R: Kant ressaltou o que chamava sua "filosofia crítica", que significava uma análise profunda da epistemologia - um estudo da própria base sobre a qual nosso conhecimento reside. Segundo Kant, fazemos certos juízos que são indispensáveis a todo conhecimento, juízos que ele classificou como "sintéticos a prior?. Por sintético, ele queria dizer que não eram analíticos e que o conhecimento neles contido não estava implícito no conceito original. Por exemplo, "a bola é redonda" é uma afirmação analítica -porque o conceito "redondeza" está contido no conceito bola. Já "a bola é brilhante" é um juízo sintético, porque diz sobre a bola alguma coisa além do que está contido no conceito original, da mesma forma que uma afirmação empírica.

Como a priori Kant definiu os juízos necessários e universais, que tinham de ser verdadeiros antes de qualquer experiência e que são constituídos somente pelo uso da razão. Diferentemente dos juízos resultantes da experiência, eles não eram particulares e contingentes. Ou seja, não se aplicavam apenas a uma instância e eram destituídos de necessidade lógica - como as afirmações "esse cavalo ganhou o Derby" e "aquele cavalo é marrom".

Como qualquer juízo científico, essas afirmações sintéticas a priori deviam ser irrefutáveis e verdadeiras em termos universais. Em outras palavras, deviam ter a mesma energia e vigor de uma afirmação analítica, embora fossem sintéticas. E deviam se adequar à experiência, permanecendo ao mesmo tempo anteriores a ela. A pergunta básica de Kant era: "Como são possíveis as afirmações sintéticas a priori levava essa pergunta à matemática, à física e à metafísica. A matemática, segundo ele, se relaciona a espaço e tempo. Argumentava que, ao contrário das aparências, o espaço e o tempo são de fato a priori— ou seja, não fazem parte da nossa experiência, sendo uma condição anterior necessária a essa experiência. Não poderíamos ter a experiência sem essas "formas de nossa sensibilidade".

Kant prossegue argumentando que as afirmações da física são juízos a priori. Elas classificam os juízos empíricos (sendo, portanto, sintéticas), mas utilizam conceitos anteriores à experiência (sendo, portanto, a priori). Esses conceitos, ou "categorias de nosso entendimento", como Kant as chamava, assemelham-se muito ao espaço e ao tempo na matemática. As "categorias" são a estrutura essencial de nosso conhecimento, sendo constituídas de coisas como qualidade, quantidade, relação (inclusive a causalidade) e modalidade (assim como existência ou não-existência). Elas não são parte de nossa experiência e, no entanto, não poderíamos ter qualquer experiência sem elas.

Contudo, quando chegamos à metafísica, o oposto se aplica à matemática e à física. A metafísica não tem qualquer relação com a experiência (já que está "além da física"). Isso significa que não podemos aplicar "categorias" como quantidade e qualidade à metafísica porque elas são a estrutura de nosso conhecimento da experiência. Assim, a metafísica se exclui do campo dos juízos sintéticos a priori, não possui base científica. Dessa forma, se tomamos um conceito metafísico, como Deus, não podemos fazer qualquer afirmação científica (ou verificável) sobre ele, pois quaisquer categorias que pudéssemos lhe aplicar só seriam relevantes para a experiência. Falar da existência (ou não existência) de Deus seria igualmente aplicar de forma errônea as categorias.

Foi desse modo que Kant rejeitou a metafísica. Ao fazê-lo, no entanto, construiu seu próprio sistema metafísico alternativo. Da maneira como Kant as viu, as "formas do nosso conhecimento" (espaço e tempo), assim como as "categorias do nosso entendimento" (inclusive a experiência, a necessidade etc), são indubitavelmente metafísicas. Nós podemos considerar que o espaço e a existência estão "lá fora", na física da nossa experiência, mas Kant não pensava assim. Dessa forma, seu argumento contra a metafísica aplica-se igualmente a eles. Não podemos fazer afirmações sintéticas a priori sobre eles.

Eles não são científicos, não são analíticos e não são logicamente necessários: são metafísicos. E se, por outro lado, estão "lá fora" na nossa experiência, certamente não podem ser conceitos a priori de nosso entendimento. A Crítica da razão prática de Kant tenta aplicar um sistema bastante similar à ética. Ao invés de indagar se existem coisas como juízos sintéticos a priori, ele indaga se há regras que a priori governam nossa vontade e que podem, assim, reivindicar a condição de universais. Em lugar das categorias, ele traz à tona um "imperativo categórico" — que não faz parte da experiência moral real, mas que forma a estrutura a priori necessária a ela. Eis como ele explicita esse imperativo categórico: "Aja somente de acordo com um princípio que desejaria fosse ao mesmo tempo uma lei universal."

Assim como as categorias, esse imperativo é puramente formal. As categorias não têm conteúdo empírico, o imperativo categórico não tem conteúdo moral. Esse imperativo categórico pode ser ótimo aparentemente, mas é amplo o suficiente para abranger as moralidades contraditórias do sadomasoquista e do hippie adepto do paz e amor. E também estritamente racional e sugere que deveríamos considerar todos os seres humanos idênticos a nós mesmos em temperamento. Nossa psicologia não é estritamente racional e não consideramos os outros idênticos a nós mesmos em temperamento. Nem desejamos isso - a menos que, por acaso, fôssemos ditadores. Como podemos sequer aplicar esse imperativo, se não pensamos assim ou nos comportamos assim?

Podemos endossar certos princípios universais, mas eles com certeza não abarcarão todos os nossos atos morais. Existem determinados princípios menos fundamentais que não desejaríamos estender às ações morais de cada um. Eu posso me abster do canibalismo e ao mesmo tempo desejar ver o princípio "é errado comer pessoas" aplicado universalmente. Mas se eu me abstiver de assassinar, isso não significa que eu deseje que um policial se abstenha de matar um sequestrador assassino.

E possível argumentar que essas observações tão rígidas não se aplicam, uma vez que o imperativo categórico é tão-somente a estrutura da moralidade. Através de nossas ações morais, nós simplesmente sugerimos princípios universais. Mas esse recuo à formalidade torna o imperativo categórico totalmente vazio. Ele afirma de maneira clara que deveríamos nos comportar da mesma forma que desejaríamos que todas as outras pessoas se comportassem.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Kant VIDA E OBRA - PARTE 5

O homem não é um deus, é um demônio." Concluiu que, "se um homem chegasse a dizer e escrever tudo o que pensa, não haveria nada mais horrível nessa terra de Deus do que o homem". Essas duas últimas citações são curiosamente reveladoras de como ele deve ter visto a si próprio — ao final de uma vida excêntrica, mas em geral sem culpa. (Não se sentia responsável em relação à Lampe, que poderia ter procurado emprego em qualquer outra parte. E podia não ver suas irmãs, mas lhes enviava dinheiro com regularidade.)

A alegria natural de Kant estava agora sendo inundada pela maré cheia de sua vida emocional reprimida. Sentia-se sem dúvida infeliz, mas determinado a permanecer fiel a si mesmo até o fim. Insistia em que não se importava em ser infeliz, atitude coerente com sua filosofia. Na Crítica da razão pura declarara que achava "surpreendente como homens inteligentes pensaram em declarar a felicidade como lei prática universal". A seu ver, a felicidade e a moralidade nada tinham em essência a ver uma com a outra. Podemos nos sentir gratificados quando realizamos um ato de virtude, mas era incapaz de compreender "como um mero pensamento que nada contém de sensível pode produzir uma sensação de prazer ou desprazer".

Essa expressão só poderia vir de um espírito totalmente dissociado das emoções. (Mesmo os mais áridos matemáticos admitem o prazer quando chegam a uma solução complexa.) No entanto, Kant admitia que uma experiência lhe dava prazer com alguma regularidade. Seu vício secreto era caracteristicamente solitário. Gostava de observar os pássaros e costumava esperar com ansiedade pelo seu retorno a cada primavera. Segundo um colega, "a única satisfação que a natureza ainda lhe permitia ... era o retorno de um pássaro que cantava do lado de fora da janela de seu jardim. Mesmo em sua velhice sem alegria, esta ainda lhe restava.

Quando seu amigo ficava longe por muito tempo, dizia: 'Ainda deve estar muito frio nos Apeninos'". Scharftstein, autor de brilhante e emotiva história da vida de Kant, na qual me inspirei intensamente, sugere que os pássaros representavam liberdade para Kant. Liberdade de que, porém? Da tirania de sua própria natureza, certamente. Mas também talvez liberdade do pensamento - aquele mesmo elemento que ele permitira escravizar sua vida, o elemento com o qual pretendeu aprisionar o mundo inteiro dentro de seu sistema. Em sua última década de vida, Kant dedicou-se a uma obra filosófica monumental que jamais terminaria.

Pretendia dar a essa obra o atraente título Ubergang von den metaphysische Anfangsgründe der Naturivissenschafi zur Physik (Transição dos fundamentos metafísicos da ciência natural para a física). Ao contrário das obras anteriores de Kant, essa é em definitivo ilegível. Desafiando a insanidade, vários corajosos especialistas tentaram escalar esse Everest dos Himalaias Metafísicos Alemães, mas retornaram ofegantes e incapazes de comunicar-se de forma coerente. Tanto quanto podemos deduzir dos que sobreviveram a essa obra, nela Kant promove sua estrutura geral a priori a uma ciência da natureza, mostrando em mínimos detalhes como isso pode ser estendido a fim de ser aplicado a ciências específicas.

A ênfase reside aqui nos "mínimos detalhes". Kant tornou-se então uma figura triste, com falência gradativa de suas habilidades maiores. Diz-se que a hipocondria é com freqüência um mecanismo de defesa contra a paranoia. No entanto, apesar da prática diligente e total de seu hobby, a paranoia de Kant começou a dominá-lo. Começou a sentir uma pressão no cérebro e decidiu que era causada por uma rara forma de eletricidade existente no ar. (Segundo ele, essa mesma eletricidade era também responsável pela epidemia de gatos que recentemente eclodira em Copenhague e Viena.) Esse envolvimento com "energia elétrica" é quase sempre associado à esquizofrenia. Mas Kant jamais foi louco. Tratava-se meramente dos nós, que o haviam mantido tão deprimido durante toda a sua vida, que iam se afrouxando. Ele começava a se apagar rapidamente. Os poucos colegas escolhidos e alunos favoritos que eram convidados para jantar observavam num silêncio triste sua mente se dissipar, até que seu novo criado o levasse. Em 8 de outubro de 1803, Kant adoeceu pela primeira vez. Teve um derrame brando depois de comer com exagero seu "queijo inglês" preferido.

Após quatro meses de debilidade crescente, morreu.em 12 de fevereiro de 1804. Suas últimas palavras foram "Es istguf (Está bom). Foi sepultado na catedral e seu túmulo continha a declaração que o fez inclinar-se para o Deus no qual com certeza acreditava, mas que jamais adorou publicamente - palavras que nos levam de volta a um garoto pequeno e vivo ouvindo a bem intencionada mãe que ele tanto venerava: "O céu estrelado acima e a lei moral no interior enchem o espírito de admiração e reverência sempre novas e crescentes quanto mais firme e assídua se mostra nossa reflexão."

Kant VIDA E OBRA - PARTE 4

Kant argumenta: "Uma pessoa que descreve algo como belo insiste em que todos deveriam dar sua aprovação a esse objeto." É evidente a semelhança com o imperativo categórico, mas aqui ele simplesmente não se aplica - a não ser no sentido pessoal e pejorativo. Uma vez mais nos defrontamos com a síndrome da conformidade.

O fato de que eu considero a pintura de Francis Bacon de penetrante beleza não significa que eu espere que todos a considerem da mesma forma. Kant prossegue argumentando que apenas através da unidade e da consistência da natureza a ciência é possível. Essa unidade não pode ser provada, mas deve ser presumida. Relacionada a essa idéia encontra-se a noção de que a natureza é útil. Kant conclui que a utilidade da natureza é "um conceito a priori especial". Como sabemos agora, esse conceito não é necessário à suposição da unidade e da consistência da natureza. E estas últimas estão nesse momento sendo questionadas pela teoria quântica.

Kant insistia que, embora não possamos provar que o mundo tem uma finalidade, devemos olhá-lo "como se" a tivesse. Não negava os aspectos maus, feios e aparentemente sem finalidade do mundo, mas acreditava que juntos representavam muito menos que seus opostos mais elevados em espírito. No século seguinte, Schopenhauer adotaria precisamente a posição contrária— talvez com justificativas mais bem fundadas, embora no final nem a postura otimista nem a pessimista possam de qualquer forma ser endossadas mediante provas e permaneçam em definitivo uma questão de temperamento.

Enquanto isso, Kant persistia em sua rotina infatigável (que ele perseguia com dedicação semelhante à interminável busca de Casanova pelas mulheres e à infindável e divertida caçada etílica de Hemingway, embora perdendo menos plumas no processo). E os cidadãos de Königsberg continuavam a acertar seus ponteiros de acordo com a hora em que Kant começava seu passeio da tarde: exatamente às três e meia. O ponto de vista de Kant de que o tempo existe apenas na mente, e nada tem a ver com a realidade, pode ter tido relação com o fato de ele viver na Prússia Oriental, território limítrofe ao sul e ao oeste com a Polônia, onde se vivia uma hora adiante.

Na fronteira oriental estava a Rússia, que ficava a mais de uma semana do resto da Europa. O povo mais próximo a observar o mesmo horário da Prússia Oriental era o alemão, distante duas fronteiras, cruzando a Polônia para o oeste.

Kant morava na Prinzessinnenstrasse, em uma casa demolida em 1893, onde foi cuidado pelo velho e irritadiço criado Lampe, com quem era capaz de se mostrar igualmente ranzinza. Tudo tinha que ser feito com total correção (exatamente como para Casanova e Hemingway). Lampe chegava até a ter que ajudar seu senhor a se despir todas as noites na ordem correta. Quando Kant ia se deitar usava invariavelmente um gorro no verão e dois no inverno - que podia ser de fato muito intenso em Königsberg, quando o vizinho Báltico congelava.

Da mesma forma que todos os meticulosos tiranos domésticos, Kant estava sempre muito preocupado com o bem-estar espiritual de Lampe. Na verdade, ele declarou que havia reinstalado Deus em sua Crítica da razão prática expressamente para dar a Lampe alguma coisa em que acreditar. E possível que Lampe não tenha agradecido devidamente o gesto: não temos evidência de sua gratidão. Embora seja um pouco mais fácil adivinhar a atitude de Lampe em relação ao método filosófico singular de seu senhor prender as meias - por meio de fios de barbante que passavam pelos bolsos das calças e eram atados a molas encerradas em duas pequenas caixas. (Essa última informação soa bastante ridícula, mas é confirmada por diversas fontes independentes, uma das quais sugeriu que, uma vez que o pai de Kant trabalhava com tiras de couro, talvez tivesse alguma relação com o fato. Significativa ou não, a hipótese continua a ocupar os psicólogos.)

Como tantos dotados de espírito independente e imaginativo, Kant era um hipocondríaco praticante. Na realidade, era tão bom no assunto que era a única pessoa a perceber que tinha algum problema. Jamais se teve notícia, ao longo de toda a sua vida, de que esse homem frágil e pequeno, de compleição espira-lada, tivesse estado doente. Sua hipocondria o mantinha em um regime incansável e sistemático: uma crítica pura e prática do físico.

Um de seus hábitos era respirar apenas pelo nariz, principalmente quando saía para caminhar no inverno gelado. Isso significa que durante o outono, o inverno e a primavera era incapaz de responder a qualquer pessoa que se dirigisse a ele na rua, já que se recusava a abrir a boca para não se resfriar.

Kant teve muita sorte ao publicar suas três grandes Críticas. Durante esse período a situação política na Prússia era de incomum tolerância, característica raramente associada àquele país. É de se duvidar que tivesse conseguido publicar essas obras na maioria dos demais países europeus. Ele reconheceu o fato e dedicou sua Crítica da razão pura a Zedlitz, ministro da educação de Frederico, o Grande.

Conforme convém a um professor provinciano e respeitoso, Kant expressava profunda admiração pelo rei, embora no coração fosse surpreendentemente revolucionário e nada sentisse senão desprezo pelos filósofos franceses que viviam ao redor da corte de Frederico. Sua bete noire preferida era De Ia Mettrie, o encantador autor de clássicos filosóficos eternos como Traité de 1'astbme et de Ia dysenterie e Réflexions philosophiques sur Vorigine des animaux, que algumas vezes escreveu sob o pseudônimo "chinês" de Docteur Fum-Ho-Ham e de quem se diz ter morrido 'pour uneplaisanterie', depois de comer um patê de faisão inteiro, a fim de demonstrar aos médicos alemães da corte um ponto de vista sobre indigestão. Não exatamente o tipo de Kant.

Mas quando Frederico, o Grande, morreu em 1796 e Frederico Guilherme II subiu ao trono, Kant viu se em maus lençóis. Wöllner, um pietista ardoroso, ocupou o Ministério da Educação e Kant foi acusado de utilizar sua filosofia para distorcer a Bíblia. Alguém no ministério tinha evidentemente conseguido lutar com as oitocentas páginas da Crítica da razão pura e descobrir que a obra negava todas as provas da existência de Deus.

Kant foi obrigado a assegurar que não mais daria aulas ou escreveria qualquer outro livro sobre assunto religioso. Escreveu uma carta ao rei oferecendo sua palavra de que obedeceria a essa ordem. Mas quando o rei morreu, em 1797, considerou-se liberado da promessa e retornou ao assunto com redobrado vigor. (Como podemos ver, suas posições sobre mentiras eram passíveis de adaptações, quando surgia a ocasião.)

Kant se aproximava então dos setenta anos, e um longo tempo de prática aperfeiçoara sua hipocondria a ponto de torná-lo um mestre nessa arte. A cada mês mandava alguém ao chefe de polícia de Königsberg para recolher as últimas estatísticas sobre mortalidade, a partir das quais calculava sua própria expectativa de vida.

Convencera-se de que a constipação enevoava seu cérebro e acrescentou uma impressionante variedade de laxantes a seu baú de remédios, que, em tamanho, equivalia a um laboratório. Lia avidamente nos jornais as notícias que davam conta das últimas descobertas médicas, com o objetivo de descobrir se tinha alguma doença nova. Kant era indubitavelmente uma raridade. Não é com freqüência que o homem exibe gênio em seu trabalho e em suas atividades de lazer. Alguns colegas da universidade que tentaram dissuadi-lo dessas atividades foram rapidamente colocados em seus devidos lugares.

Kant sabia muito mais sobre doenças do que qualquer mero professor de medicina na Universidade de Königsberg. Nesse tema, como em todos os outros, não tolerava contradições. (Diferentemente de outros egoístas tão atormentados quanto ele próprio, estava sempre certo e sabia disso.) Até mesmo um admirador foi obrigado a reconhecer: "Ele não tolera ouvir quando outros falam muito, torna-se impaciente ... se alguém apregoa saber qualquer coisa melhor que ele ... A contradição direta o ofendia e - quando se persistia nela - o amargurava." Não se tratava inteiramente de megalomania. Kant simplesmente considerava a verdade sacrossanta. Não era culpa sua que ele sempre soubesse do que falava, enquanto outros se enganavam com tanta freqüência. "Ele não impunha sua opinião a ninguém, mas a obstinação recíproca causava-lhe genuína mágoa."

Os professores da universidade podem ter sido capazes de tolerar esse tratamento, mas ficou provado que era demais para seu criado Lampe, que tinha de conviver com ele o tempo todo. Após décadas como servidor fiel, finalmente começou a beber e teve que ser despedido. Nesse meio tempo, Kant continuava a resistir estoicamente às atenções da família. Continuava a  justificar sua falta de contato com as irmãs explicando que elas não possuíam seu mesmo nível intelectual. (Desde a morte de Newton, é provável que ninguém na Europa satisfizesse esse critério.) Quando pressionado um pouco mais, dizia que eram bastante agradáveis, mas que não tinha nada em comum com elas porque não tinham cultura.

Essa desculpa não era válida com certeza em relação a seu irmão - que chegara a ser um profissional culto, sendo da mesma forma ignorado por ele. Esse irmão ansiava carinhosamente por algum contato social com seu famoso irmão filósofo e escrevia-lhe cartas com regularidade sugerindo que se encontrassem. Sem nenhum sucesso. Num determinado ponto implorou a Kant: "Não posso mais suportar que essa separação continue, somos irmãos." Kant muitas vezes demorava tanto quanto dois anos para responder a essas cartas, argumentando que estivera ocupado demais para escrever antes.(Embora tivesse, é claro, conseguido encontrar tempo para escrever várias centenas de páginas de assombrosa filosofia.)

Na idade de sessenta e oito anos, depois de um período de dois anos e meio sem responder à última carta do irmão implorando para que se vissem, Kant escreveu assegurando-lhe que o manteria em seus pensamentos durante o curto tempo de vida que ainda lhe restava, mas cuidadosamente evitou mencionar qualquer encontro. À medida que envelhecia, Kant tornava-se cada vez mais solitário e misantropo. "A vida é um fardo para mim", confessou finalmente, "estou cansado de carregá-lo.
E se o anjo da morte decidisse vir esta noite e me levasse daqui, ergueria minha mão e diria Deus seja louvado!'" Mas continuava avidamente com seu lazer, que se presume tivesse o objetivo de prolongar sua vida.

Qualquer ideia de abandoná-lo era descartada. Não receava cometer suicídio, mas isso seria um erro moral. Passou a ter cada vez mais pesadelos. Todas as noites, em seu sono, via-se cercado por assaltantes, caçado por assassinos. Os sintomas de paranoia são inequívocos. Declarou: "Todo homem chega quase a odiar o outro, tenta erguer-se acima de seu semelhante, está cheio de inveja, ciúme e outros vícios diabólicos.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Kant VIDA E OBRA - PARTE 3

Já se disse que somente um homem que jamais viu uma montanha poderia acreditar que o espaço não existe fora de nós, sendo apenas parte de nosso aparato perceptivo. E o senso comum parece concordar conosco. Mas essas desajeitadas objeções ad hominem nada têm a ver com filosofia, assim me disseram.

Espaço e tempo, e as categorias (que incluem noções como pluralidade, causalidade e existência), só podem ser aplicados aos fenômenos que fazem parte da nossa experiência. Se os aplicarmos a coisas não experimentadas, acabamos provocando "antinomias" - ou seja, contrastando duas afirmações, ambas aparentemente passíveis de comprovação mediante argumento intelectual puro. Dessa forma, Kant destrói todos os argumentos meramente intelectuais em torno da existência (ou não existência) de Deus. Simplesmente não podemos aplicar uma categoria como a existência a essa entidade não empírica.

Como podemos ver, Kant não era a favor de um retorno por atacado à metafísica em sua Crítica da razão pura. Por "razão pura" pretende designar uma razão a priori, ou seja, alguma coisa que se pode saber anteriormente à experiência. Hume havia negado essas entidades transcendentais (quer dizer, aquelas que "transcendem" a experiência). Mas Kant estava convencido de que tinha devolvido esse elemento transcendental/metafísico à filosofia sob a forma de suas "categorias da razão pura". A visão cética de Hume pode parecer simplista e com certeza não pode ser posta em prática se quisermos viver no mundo real. (Sua negação da causalidade de fato reduz o todo da ciência ao status de metafísica.)

A postura de Kant, por outro lado, é sutil e sofisticada ao extremo - mas raramente suplanta a posição de Hume do ponto de vista filosófico. Podemos não ser capazes de experimentar o mundo sem a concepção de espaço, quantidade etc. Mas é difícil argumentar que esses não constituem parte integral daquela experiência ou imaginar como poderiam existir sem ela (ou seja, antes dela).

Por outro lado, o argumento de Kant de que não podemos jamais conhecer o mundo real tem peso considerável. Todas as coisas que percebemos são apenas fenômenos. A coisa em si (o númeno) que sustenta ou propicia o aparecimento desses fenômenos permanece para sempre incognoscível. E não há razão por que ela deveria assemelhar-se de qualquer maneira a nossas percepções. Os fenômenos são percebidos por meio de nossas categorias, que não têm absolutamente nada a ver com a coisa em si, que permanece além da qualidade, quantidade, relação e similares.

Nesse meio tempo, Kant continuava a viver sua vida de rotina rígida, que não excluía um componente de vida social, embora tal atividade fosse sempre uma parte menor em seu cotidiano. Mantinha relações com alguns de seus mais brilhantes alunos, assim como com alguns representantes da faculdade, embora não tivesse chegado a ser íntimo de qualquer deles. (Não se dirigia a ninguém com o informal "du", mesmo depois de décadas de contato social.) O pensamento era sua vida. "Para um erudito, pensar é uma forma de se nutrir, sem a qual, quando está acordado ou sozinho, não pode viver." Seu intento era muito mais conhecer-se do que conhecer qualquer outra pessoa. Mas a tarefa de conhecer a si mesmo provou ser tão difícil para ele quanto o era para outros. "Não me entendo o suficiente", reclamava.

Talvez tivesse medo do que pudesse encontrar. Nesse ponto Scharftstein suscita uma questão fundamental: "Essa coisa-em-si não era simplesmente desconhecida, era proibida; porque se tratava da vida emocional reprimida de Kant, deduduzo, e ele temia que, revelada essa vida, fosse arruinado." Ao contrário da insipidez de Kant, essa semelhança entre sua psique e sua filosofia é digna de destaque. Embora uma vez mais seja difícil dizer de que tipo de destaque ela é digna. Teria a constituição mental de Kant afetado sua filosofia? O argumento de que ela era uma imagem de sua psique é verdadeiro apenas em seu sentido mais bruto.

Qualquer tentativa de ampliar essa imagem pode não fazer justiça às sutilezas intelectuais dessas duas complexas entidades. Kant era bastante consciente de que não tinha amigos. Mas isso não o incomodava. Gostava muito de citar a observação de Aristóteles: "Meus amigos, não tenho amigos."
De fato, ele recomendava essa postura. "A amizade é uma restrição dos sentimentos positivos a um único sujeito, e muito agradável para quem quer que sejam dirigidos, mas é também prova de que faltam disponibilidade e boa vontade."

Psicólogos têm argumentado que a falta de habilidade (ou a falta de vontade) de Kant de estabelecer relações estreitas era sinal de uma infelicidade profunda. Mas ele não parece ter sido infeliz. Ao contrário. Aqueles que o conheceram ressaltaram sua alegria. "A disposição de Kant era, por natureza, para a alegria. Ele via o mundo com olhar prazeroso e transferia sua satisfação às coisas externas. Por isso estava quase sempre disposto a ser feliz", era a observação típica de um de seus colegas.

Sete anos após a publicação de sua Crítica da razão pura, publicou a Crítica da razão prática, na qual reinstala Deus, não mais considerado uma entidade da qual não se pode falar (porque não se encaixava nas categorias). A Crítica da razão prática é dedicada à parte ética do sistema de Kant. Em vez de procurar bases metafísicas para nossa percepção, ele agora as busca para nossa moralidade.

Procurava nada menos que a lei moral fundamental. Mas certamente era impossível descobrir semelhante lei que agradasse a todos. De cristãos a budistas, de liberais a prussianos — todos acreditando no mesmo bem fundamental? Kant achava que era possível descobrir uma lei básica, o que conseguiu colocando de lado o que a maioria considerava a questão principal. Bem e mal, nesse ponto, não o preocupavam. Ele não buscava descobrir alguma essência de todas as interpretações diferentes desses conceitos morais básicos. Salientava que estava à procura dos alicerces da moralidade, muito mais do que de seu conteúdo.

Assim como com a razão pura, também com a razão prática: o que era necessário era um conjunto de princípios a priori como as categorias. Na realidade, Kant finalmente expôs apenas um princípio: seu "imperativo categórico". Essa era a base a priori de toda ação moral: sua premissa metafísica. De forma análoga às categorias da razão pura, ela oferece uma estrutura para nosso pensamento ético (razão prática), embora não lhe proporcione qualquer conteúdo moral específico. O imperativo categórico de Kant afirma: "Aja somente de acordo com um princípio que desejaria que fosse ao mesmo tempo uma lei universal."

Esse princípio levou Kant a acreditar que deveríamos agir de acordo com nosso dever e não conforme nossos sentimentos, o que deu origem a algumas conclusões estranhas. Por exemplo, ele declarou que o valor moral de uma ação não deveria ser julgada segundo suas conseqüências, mas apenas considerando em que medida fora praticada em nome do dever. Isso é
totalmente insensato — se é que a moralidade está relacionada à sociedade e não apenas à honradez individual. Kant pretendia que seu imperativo categórico fosse apenas uma estrutura, vazia de conteúdo moral. Mas não é exatamente assim. Ele ainda contém traços de conteúdo moral. A moralidade do conformismo, para começar.

Do imperativo categórico pode-se inferir que todos deveriam agir da mesma forma, independentemente de seu temperamento ou sua tarefa. Deveria o chefe de um governo agir com os mesmos escrúpulos morais que o prior de um mosteiro? Deveria ao menos tentar? Deveria Churchill ter tentado se comportar como Gandhi? Ou vice-versa? Talvez todos os sistemas levem forçosamente a essas formas rígidas. (Mas sem qualquer sistema ético estaríamos totalmente perdidos - incapazes de proceder a qualquer juízo de valor.)

O sistema ético de Kant também levou-o a acreditar que não deveríamos jamais mentir, apesar das conseqüências que pudessem advir desse fato. Estava bastante consciente das implicações desse ponto de vista, mas, apesar disso, manteve-o. "Dizer uma mentira a um assassino à procura de um amigo seu, refugiado na sua casa, seria um crime."

Devemos acreditar que Kant teria sido capaz de entregar um amigo judeu aos nazistas? Não: tudo que sabemos a seu respeito me deixa convencido de que ele teria seguido nessas circunstâncias os preceitos do dever. Sua mente tão vivaz descobriria rapidamente alguma norma que o proibisse de entregar o amigo. No entanto, essa questão de nunca mentir expõe uma falha evidente no sistema de Kant. A fim de não cometer nenhum erro, ele considerou o tema com excessiva seriedade. Chegou a gastar tempo se torturando sobre a licitude de se concluir uma carta com a saudação costumeira da época "Seu humilde servo". Seria mentira?

Kant insistiu que não era escravo de ninguém e que não tinha qualquer intenção de prestar obediência a seus correspondentes, mas finalmente parece ter cedido em relação a esse ponto. No entanto, em relação a alguns assuntos literários mais sérios permaneceu inflexível. Era contra a leitura de romances, que faziam com que nosso cérebro se tornasse "fragmentário" e enfraqueciam nossa memória. "Pois seria ridículo memorizar romances a fim de relatá-los a outros." (A suposição de que memorizava todos os outros livros que lia não deve nem de longe ser descartada.) Kant despreza nesse ponto o fato de que ler o romance Heloise, de Rousseau, era uma experiência educativa que ele parece ter vivido sem explodir seu pensamento em fragmentos e sem entorpecer sua memória.

Kant gostava de ler poesia, mas somente se esta fosse uma harmonização intelectual de virtude e sentimento. Poesia sem rima era simplesmente prosa enlouquecida. Música era diferente e, no todo, assunto bem mais complexo. Apenas ela era capaz de penetrar a carapaça de repressão que protegia suas emoções não reveladas. E por isso era particularmente severo em relação a ela. Os músicos não tinham caráter, pois o que tocavam reduzia tudo a sentimento. Recomendava a seus alunos evitar ouvir música, já que ela os tornaria efeminados.

No entanto, ele próprio não conseguia parar de frequentar concertos - até o dia em que compareceu a um em memória do filósofo Moses Mendelssohn, que o atingiu como um mero e infindável lamento, e nunca mais foi a um concerto. Detestava música folclórica (como as que sua mãe freqüentemente cantava para ele).

Em. 1790, aos cinqüenta e oito anos, Kant publicou a terceira e última parte de sua obra-prima, a Crítica do juízo, ostensivamente preocupada com juízos estéticos, mas também tratando de teologia (e muito, muito mais). Kant argumenta que a existência da arte pressupõe o artista, e que é através da beleza do mundo que reconhecemos um criador benigno. Conforme ele próprio havia antes sugerido, reconhecemos a obra de Deus nas estrelas do céu, assim como em nossa inclinação interior para fazer o bem.

Como havia feito com sua teoria da percepção e sua teoria ética, Kant procurou estabelecer uma base metafísica para sua teoria do juízo estético. Desejava estabelecer um princípio a priori que tornasse possível nossa apreensão da beleza. Nesse ponto, pisava em terreno mais movediço. É sempre difícil alcançar consenso no que toca à beleza. Alguns consideram os Alpes suíços piegas e encontram sustento espiritual no expressionismo. Outros não.Tais opiniões são aparentemente inconciliáveis. Mas Kant estava decidido a  trazer tudo para dentro dos limites de seu sistema.

sábado, 4 de agosto de 2018

Kant VIDA E OBRA - PARTE 2

Kant estava agora em condições de exercer um cargo na universidade como Privatdozent (professor auxiliar). Esse posto seria ocupado por ele pelos quinze anos seguintes, numa vida acadêmica de incansável diligência. Durante esse período, ensinou principalmente matemática e física e publicou tratados sobre ampla gama de assuntos científicos, inclusive vulcões, natureza dos ventos, antropologia, causas dos terremotos, incêndios, o envelhecimento da Terra e até mesmo sobre os planetas (que em sua previsão seriam todos habitados um dia, sendo que os mais distantes do sol desenvolveriam as espécies de maior inteligência).

No entanto, a inclinação natural de Kant era para a especulação. Continuava a ler filosofia amplamente. No racionalismo, suas idéias eram influenciadas sobretudo por Newton e Leibniz. Embora as grandes conquistas de Newton tenham sido em física e matemática, naquela época esses assuntos ainda eram considerados parte da filosofia: uma espécie de "filosofia natural". O título completo da principal obra de Newton é Philosophiae naturalis principia mathematica (Os princípios matemáticos da filosofia natural).

Kant estudou Newton com profundidade suficiente para propor uma "Nova teoria do movimento e da inércia" que se opunha à visão de Newton. O fato de que o tenha mal interpretado não é relevante: estava sendo levado a especular sobre sistemas que abrangiam todo o universo e tencionava questionar o maior intelecto da época em seu próprio terreno. De acordo com Leibniz, o mundo físico de causa e efeito comprovava a harmonia interna do propósito moral do mundo. A leitura de Leibniz levou Kant a ver a humanidade não apenas como participante da natureza, mas, além e acima disso, como participante da finalidade última do universo.

Ao mesmo tempo o interesse de Kant pela filosofia da ciência conduziu-o à leitura do filósofo escocês Hume. Kant ficou impressionado com a insistência de Hume na experiência como base de todo o conhecimento, o que se ajustava ao enfoque científico. (Pontudo, descobriu-se perturbado pelas conclusões céticas que Hume tirou de seu rígido empirismo. Segundo Hume, tudo que experimentamos é uma seqüência de percepções - e isso significa que noções tais como causa e efeito, corpos e coisas, mesmo a mão controladora do Deus criador, são meras suposições ou crenças.

Nenhuma delas é jamais de fato experimentada. Surpreendentemente, Kant deixou-se tocar também pelo apelo emocional de Rousseau. Primeiro dos românticos, Rousseau foi o menos acadêmico de todos os filósofos, acreditando mais na expressão pessoal através da emoção do que no pensamento racional. Seu clamor por liberdade acabaria sendo forte inspiração para a Revolução Francesa. Kant pode ter sido uma personalidade essencialmente ascética, mas havia algo em Rousseau que vibrou uma corda em suas emoções tão reprimidas. Sob a fachada do frio acadêmico batia o coração de um romântico secreto — e mais tarde isso se tornaria evidente em sua filosofia. Mas, naquele momento, todos esses elementos díspares - Newton, Leibniz, Hume, Rousseau — permaneciam como tais.

Antes de encontrar uma forma de conciliar e absorver essas influências, Kant seria incapaz de começar a criar alguma filosofia original. E a envergadura dessa tarefa iria exigir longo tempo.
Talvez Kant tenha se tornado impaciente — já que agora acontece um episódio estranho. Em lugar de publicar mais uma obra acadêmica séria, Kant escreveu um curioso livro satírico intitulado Os sonhos de um visionário explicados pelos sonhos da metafísica. O "visionário" do título é o excêntrico místico sueco Swedenborg, famoso pelas descrições de suas longas viagens através do céu e do inferno.

Em 1756, Swedenborg havia publicado sua obra-prima em oito volumes, Arcana coelestia (Os segredos do céu). Infelizmente, as vendas não foram bem e, depois de dez anos, apenas quatro exemplares tinham sido vendidos. Um deles, sabe-se agora, foi comprado por Kant. Esses volumes de ocultismo metafísico exerceram profunda influência sobre Kant - o suficiente para inspirá-lo a escrever um volume inteiro satirizando-os. Conforme declara de maneira extravagante na introdução: "O autor confessa com certa humildade que era tão simplório que procurava descobrir a verdade de alguns contos do tipo mencionado.

Ele encontrou como sempre, onde não se tem nada para procurar -, ele não encontrou nada." No entanto, logo se torna claro que o deboche de Kant acerca do "pior de todos os visionários" e dos "diversos mundos de pensamentos etéreos ... extraídos ... de conceitos fraudulentos" não é exatamente o que parece. Por baixo dessa coerente zombaria e de expressões de desprezo intelectual, há um elemento de inegável seriedade em seu interesse por Swedenborg. Ele ansiava por acreditar em metafísica (mesmo que não fosse de maneira tão extrema), mas seu formidável desenvolvimento intelectual começava a fechar essa avenida.

O estilo da escrita de Kant é notoriamente prolixo e difícil, mas todos os relatos comprovam que suas aulas eram o oposto. Seu corpo era tão pequeno e retorcido que apenas sua cabeça coberta pela peruca, e com seus traços precisos e rígidos, era visível por sobre o púlpito. Mas essa cabeça falante era uma fonte de perspicácia, de erudição e idéias fascinantes. As aulas de Kant eram um enorme sucesso e sua fama logo se espalhou, estimulada por seu turbilhão de tratados sobre assuntos científicos.

As famosas aulas de geografia que costumava dar no verão atraíam sempre multidões de fora da universidade. Repetindo-se por mais de trinta anos viriam a firmá-lo como o primeiro professor acadêmico de geografia física, apesar de durante toda a sua vida jamais ter colocado os olhos numa montanha e de provavelmente nunca ter chegado a ver o mar aberto (que ficava a inimaginável distância de trinta quilômetros). Suas descrições vigorosas e penetrantes deram vida a terras distantes sobre as quais, entusiasmadíssimo, lia durante as longas noites de inverno, quando o gélido nevoeiro báltico invadia as ruas da remota e provinciana Königsberg.

Kant começava então a dar também aulas de filosofia e logo se tornou óbvio que tinha feito incursões profundas e extensas pelos territórios hostis da ética e da epistemologia, além de explorar os confins da lógica e, até mesmo, regiões tão distantes da civilização como a metafísica (e sobrevivera para contar a estória). Nesse ínterim, os tratados sobre assuntos mais amenos, como fogos de artifício, defesa militar e a teoria dos céus, continuavam a jorrar de sua pena. Apesar disso, recusaram-lhe duas vezes a cátedra de professor na Universidade de Königsberg, por razões não muito claras, mas que se suspeita contivessem algum elemento de esnobismo provinciano. Ou talvez apenas não gostassem dele. De qualquer forma, Kant com toda certeza gostava de Königsberg.

Quando lhe ofereceram o prestigioso cargo de professor catedrático de poética na Universidade de Berlim, ele o recusou. (O que nos privou da alegria de ler a crítica de Kant aos poetas num estilo de tão grande e deliberada complexidade que teria fatalmente se convertido em leitura essencial do dadaísmo.)

Felizmente, em 1770, as autoridades da Universidade de Königsberg cederam e Kant foi nomeado professor catedrático de lógica e metafísica. Aos quarenta e seis anos, tinha-se tornado, então, cada vez mais crítico em relação a Leibniz e seus discípulos racionalistas, que haviam se transformado na força dominante da filosofia alemã.

O empirismo de Hume parecia incontestável, e de forma relutante ele chegou a se deixar convencer pelo seu ceticismo. Objetos, causa e efeito, continuidade, até mesmo o eu, todas essas noções pareciam falaciosas, permanecendo além do campo da nossa experiência, única fonte segura do nosso conhecimento. Kant aceitava isso porque lhe parecia intelectualmente irrefutável, mas não estava satisfeito com a esterilidade dessa situação. Parecia não haver mais espaço para o prosseguimento da filosofia. Seria de fato o fim?

Um dia, então, quando estudava a Investigação sobre o entendimento humano, de Hume, Kant "acordou de seu sono dogmático". Num lampejo de inspiração viu como podia construir um sistema e responder ao ceticismo destrutivo de Hume, que ameaçara destruir a metafísica para sempre.

Durante onze anos, Kant nada publicou, mas continuou trabalhando em sua filosofia. Já havia, por essa época, começado a viver uma vida de extrema regularidade e, durante esse período, sua constância de hábitos começava a alcançar status de lenda. Nas palavras de Heine: "Despertar, tomar café, escrever, dar aula, jantar, caminhar, cada coisa tinha seu horário estabelecido. E quando Immanuel Kant, em seu casaco cinzento, bengala na mão, surgia à porta de sua casa e caminhava em direção à pequena avenida repleta de tílias, ainda hoje denominada 'O passeio do filósofo', os vizinhos sabiam que o relógio marcava exatamente três e meia.

E assim ele passeava para cima e para baixo, em qualquer estação; e quando o tempo estava escuro ou as nuvens cinzentas ameaçavam chuva, via-se seu velho criado Lampe seguindo-o penosamente e cheio de ansiedade, com um enorme guarda-chuva debaixo do braço, como um símbolo da Prudência." Diz-se que em apenas uma célebre ocasião Kant quebrou sua rotina — no dia em que começou a ler o Emile, de Rousseau, quando se deixou absorver de tal forma que, para terminá-lo, perdeu seu passeio. Só mesmo as declarações de emoção romântica de Rousseau poderiam fazê-lo esquecer sua rotina. Mas esses sentimentos não eram suficientes para provocar qualquer ruptura séria em hábitos de uma vida inteira.

Embora Kant tenha considerado duas vezes durante esses anos a hipótese de se casar, em ambas as ocasiões demorou tanto a se definir que, na hora em que se decidiu (a favor, nos dois casos), uma das damas já havia se casado com outro e a segunda mudado para outra cidade. Kant não era homem para ser impelido a qualquer decisão precipitada. No entanto, sua admiração pelas idéias românticas de Rousseau não se limitava à teoria. Anos mais tarde, quando muitas dessas idéias se tornaram realidade, com o adventoda Revolução Francesa, Kant chorou de alegria — sentimento raro na ferozmente conservadora, provinciana e prussiana cidade de Kõnigsberg, e provavelmente ímpar no meio de seu ranzinza estabelecimento universitário.

Em 1781, Kant enfim publicou a Crítica da razão pura, em geral considerada sua obra-prima. No entanto, nem todos se entusiasmaram muito. Quando enviou uma cópia do manuscrito para seu amigo Herz, recebeu-o finalmente de volta lido apenas pela metade. Herz argumentou que continuar a ler a obra de Kant equivaleria a cortejar a insanidade. E podemos nos sentir da mesma forma. Em sua Crítica da razão pura, Kant decidiu eliminar inúmeros argumentos interessantes e exemplos concretos, temendo que sua obra se tornasse demasiado longa. Mesmo assim, na versão traduzida chega-se a mais de 800 páginas. E a maior parte assim: "A proposição apodítica cogita a asseção conforme determinam essas mesmas leis do entendimento, e portanto afirmando-se como a priori, dessa forma, expressa..."

Mesmo na tradução mais refinada isto soa apenas ligeiramente melhor: "Laproposizioneapodittica concepisce ilguidizio assertorio determinato secondo queste legge deWintelletto stresso e, per consequenza, corne affírmativo a priori; ed es prime cosi..." Não há como querer saber como seria em alemão (o milagre é que Hertz tenha conseguido chegar à metade antes de começar a temer por sua sanidade mental). Mas não vamos permitir que isso nos desvie da magnitude do verdadeiro sistema de Kant. Seu objetivo era a restauração da metafísica. Ele concordava com Hume e com os empiristas quanto à inexistência de idéias inatas; mas negava que todo conhecimento fosse originado da experiência.

Os empiristas afirmavam que todo conhecimento deve corresponder à experiência; Kant, de forma brilhante, inverteu a afirmação, declarando que toda experiência deve corresponder ao conhecimento. Segundo Kant, espaço e tempo são subjetivos, são nosso método de perceber o mundo. De certa maneira, são como óculos irremovíveis, sem os quais somos incapazes de dar sentido à nossa experiência. Mas esses não são os únicos elementos subjetivos que nos ajudam a compreender nossa experiência. Kant explicava que existem doze "categorias" (como as chamava), que concebemos por meio de nosso entendimento, trabalhando independentemente da experiência. Essas categorias incluem coisas como qualidade, quantidade e relação.

Essas também são como óculos irremovíveis. Não conseguimos ver o mundo de qualquer outra forma senão em termos de qualidade, quantidade etc. Mas através desses óculos irremovíveis só conseguimos ver os fenômenos do mundo -não conseguimos jamais perceber os verdadeiros númenos, a realidade mesma que sustenta ou propicia o aparecimento desses fenômenos.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Kant VIDA E OBRA - PARTE 1

INTRODUÇÃO

O simples fato de alguma coisa ser impossível não significa que alguém não irá tentar realizá-la. Kant não apenas tentou, mas conseguiu alcançar o impossível. Depois de Hume ter destruído a filosofia, e todas as possibilidades de construção de um sistema metafísico, Kant criou o maior de todos eles. Seu propósito era refutar Hume, mas felizmente ele havia lido apenas a Investigação sobre o entendimento humano, e não o ceticismo mais penetrante do anterior Tratado sobre a natureza, humana. Tivesse Kant lido o Tratado e talvez não houvesse elaborado qualquer sistema. Teria sido lamentável e teria deixado toda uma geração de professores de filosofia alemã do século XIX desempregada.

O sistema de Kant é como a ideia de gravidade de Newton. Não é a resposta final, mas está próximo da forma como ainda vemos o mundo. Não erraremos muito se olharmos o mundo à maneira de Kant. A filosofia de Hume é essencialmente simplista: reduz nossa condição filosófica ao refúgio estéril do solipsismo. Kant, construindo nas areias ilusórias do erro, erigiu um maravilhoso castelo, de imensa engenhosidade e complexidade, capaz de nos manter absortos e cheios de felicidade, com nosso balde e nossa pá, durante as férias inteiras.

É difícil saber o que dizer sobre a vida de Kant. Na prática, ele não viveu (fora da mente). Nada que possa despertar qualquer interesse lhe aconteceu. No entanto, a descrição de uma vida de extremo tédio não necessita ser, ela própria, maçante — conforme foi demonstrado por seu contemporâneo Casanova e, mais recentemente, por Hemingway.


VIDA E OBRA - PARTE 1

Immanuel Kant nasceu em 22 de abril de 1724 na cidade báltica de Kõnigsberg, então capital da isolada província alemã da Prússia Oriental (atualmente Kaliningrado, na Rússia). Seus ancestrais haviam emigrado da Escócia no século anterior e há grande probabilidade de que tivessem algum grau de parentesco com Andrew Cant, notório pregador escocês do século XVII. Consta que Cant teria sido a origem do verbo inglês to cant, que se refere ao "uso de jargão" - traço de família que reapareceria impetuosamente no filósofo.

Na época do nascimento de Kant, a Prússia Oriental se recuperava das devastações trazidas pelas guerras e pela peste, que haviam reduzido a população a menos da metade. Kant foi criado em atmosfera de pobreza e religiosidade. Era o quarto filho da família - constituída de cinco irmãs e um irmão mais novo. O pai, escocês, cortava tiras de couro e decla rava jocosamente "não conseguir nunca equilibrar o orçamento", fosse em casa, fosse no trabalho. Kant manteve sempre atitude respeitosa em relação a ele, indivíduo amável porém acuado financeiramente, e diz-se que quando criança gostava de observá-lo cortando com habilidade pedaços de couro para arreios.

No entanto, de acordo com o psicólogo e filósofo Ben-Ami Scharftstein, dada a destreza do pai, "a inabilidade manual de Kant é, por conseguinte, digna de nota". Seja esse o caso ou não, e de que tipo de nota ele é digno precisamente, a principal e primeira influência na vida de Kant foi sem dúvida sua mãe. Frau Kant era uma alemã totalmente inculta, que se diz ter sido dona de grande "inteligência natural", fato que influenciou de forma especial seu filho Imma-nuel - ou Manelchen, como ela o chamava ("Pequeno Manuel"). Tinha o hábito de levá-lo para passeios no campo e dizer-lhe os nomes das plantas e flores. A noite, costumava mostrar-lhe as estrelas, indicando seus nomes e as constelações a que pertenciam. Era uma mulher piedosa, e seu jeito afetuoso porém austero também desempenhou função educativa na formação do caráter moral de seu filho. Essa dupla insistência em fatos e obrigações morais seria uma faceta de Kant por toda a sua vida, além de exercer papel capital em sua filosofia.

A observação mais tamosa de Kant, enunciada mais de cinqüenta anos depois, remonta aos primeiros dias com sua mãe: "O céu estrelado acima e a lei moral no interior enchem o espírito de admiração e reverência sempre novas e crescentes quanto mais firme e freqüente se mostra nossa reflexão." Kant foi educado num rigoroso ambiente pietista e dos oito aos dezesseis anos frequentou a escola local, onde sua inteligência excepcional e sua aguda sede de saber logo se cansaram da interminável educação religiosa. Seu desgosto com a religião formal permaneceria com ele até o final da vida (na idade madura jamais frequentou a igreja). Apesar disso, conservou muito da postura pietista, com sua crença em um estilo de vida simples e sua adesão à moralidade rigorosa.

Em 1737, sua mãe morreu e teve enterro de pobre. Kant tinha quatorze anos e, segundo ele próprio, por essa época experimentou as primeiras manifestações da sexualidade. Psicólogos já sugeriram que a perda da mãe que tanto amava nesse estágio da puberdade fez com que se sentisse culpado e reprimisse seus desejos sexuais. Ou foi esse o caso ou os desejos simplesmente desapareceram. Qualquer que tenha sido a causa, daí em diante Kant viveria uma vida de repressão sexual que
assumiria proporções heróicas.

Aos dezoito anos foi admitido na Universidade de Kõnigsberg como estudante de teologia. No início recebeu ajuda financeira da igreja pietista local, mas colaborava para seu próprio sustento dando aulas para alguns colegas mais atrasados. Logo se cansou da teologia e começou a demonstrar enorme interesse pela matemática e pela física. Leu Newton, que abriu seus olhos para as implicações filosóficas das novas descobertas da ciência e para os grandes progressos então alcançados em todas os setores desse campo, da astronomia à zoologia. A ciência baseada na experiência só podia ser acomodada numa filosofia empirista, ou seja, uma filosofia que baseasse nosso conhecimento do mundo na experiência.

Em 1746, quando contava vinte e dois anos, seu pai morreu. Ele próprio, o irmão e as cinco irmãs mais jovens foram deixados sem centavo. As irmãs caçulas foram entregues a uma família pietista, as mais velhas foram trabalhar como camareiras. Kant tentou sem sucesso um emprego numa escola local e foi forçado a abandonar a universidade sem obter o diploma. Nos nove anos seguintes Kant se manteve dando aulas particulares para famílias ricas nas áreas rurais vizinhas. Por algum tempo foi contratado pelo conde e Condessa Keyserling (família aristocrática que mais tarde iria gerar o pseudofilósofo Hermann Keyserling, cujas idéias elevadas, porém falsas, seriam o grande consolo das desiludidas matronas da sociedade após a Primeira Guerra Mundial).

Sempre que conseguia algum dinheiro extra, Kant o remetia a suas irmãs menos afortunadas, hábito que conservou por toda a vida. Além desses gestos de generosidade, porém, não mantinha qualquer contato pessoal com a família. Não em função de qualquer atitude esnobe de sua parte, mas, segundo se alega, devido à "natural austeridade e objetividade de seu caráter", o que se tornaria um traço pessoal do filósofo em sua vida futura. Suas cinco irmãs continuariam a residir em Königsberg (cidade de apenas 50.000 habitantes) durante todo o tempo de vida do filósofo, mas ele não se encontrou com nenhuma por mais de vinte e cinco anos.

Quando finalmente uma delas veio visitá-lo, ele nem sequer a reconheceu. Quando lhe informaram quem era, desculpou-se junto aos companheiros por sua falta de cultura. Kant pode não ter sido esnobe, mas ficou conhecido por sua incapacidade de suportar os tolos. Até mesmo em sua própria família, tudo indica. No entanto, esse incidente traz à tona um detalhe curioso. A irmã de Kant devia ter mais que uma semelhança passageira com a mãe, tanto intelectual quanto fisicamente. E teria mais ou menos a mesma idade da mãe quando esta o criou. Significaria esse gesto que o celebrado amor de Kant pela mãe se tornara tão profundo que ele já não o reconhecia? Sugere-se que Kant, inconscientemente, se ressentia da cadeia repressora - circunstâncias, moralidade, aniquilamento sexual - que a mãe lhe impusera.

Sua incapacidade de reconhecer a irmã (ou de ter de fato alguma coisa a ver com ela) pode perfeitamente estar relacionado a isso, mas não há forma de saber. (A total ausência de vida em Kant atraiu perversamente muito mais atenção dos psicólogos do que a vida comparativamente normal de outros filósofos, embora, a meu ver, a própria noção de normalidade nesse campo seja um ponto discutível.)

Kant pode ser sido indiferente em relação à sua própria família, mas parece ter desfrutado a vida no meio das famílias ricas que o contratavam como professor. Sua aparência era bastante excêntrica, como seu próprio caráter. Tinha menos de um metro e meio e sua cabeça era desproporcional em relação ao resto do corpo. Sua estrutura lembrava a rosca de um saca-rolhas e fazia com que o ombro esquerdo se inclinasse para a frente, o direito se curvasse para trás e a cabeça tendesse a pender para um lado. Vestido com roupas puídas e praticamente sem nenhum pfenning no bolso, não seria exatamente o sucesso do campus na Universidade de Königsberg (que, por seu turno, dificilmente poderia ser considerada centro de qualquer sociedade cosmopolita).

Nesse momento, no entanto, vestido por seus empregadores cm trajes elegantes e encorajado a juntar se aos convidados da família, Kant positivamente floresceu. Logo desenvolveu uma aguda perspicácia, adquiriu um verniz de sofisticada segurança e tornou-se exímio jogador de cartas e de bilhar. Quando a família partia para as férias de verão no campo, Kant os acompanhava, afastando-se quase oitenta quilômetros de Königsberg. (Isso foi o mais longe de sua cidade natal a que ele jamais chegaria em toda a sua vida.) Mas esse período de elegância relativa foi apenas uma fase.

Em 1755, aos trinta e um anos, Kant finalmente se graduou pela Universidade de Königsberg, em parte devido à caridade de um benfeitor pietista. Era tarde para se conseguir um diploma; e, como veremos, Kant era excepcionalmente lento na execução de seus projetos. Por volta dessa idade, quase todos os outros principais filósofos já haviam começado a formular as idéias pelas quais seriam lembrados. Somente duas décadas mais tarde Kant começou de fato a produzir filosofia com originalidade.

Tudo sobre Kant

Vida e obra - parte 1.

Vida e obra - parte 2.

Vida e obra - parte 3.

Vida e obra - parte 4.













domingo, 29 de julho de 2018

Citações

Fazemos guerra para poder viver em paz.
Ética a Nicômaco, Livro X, 1177b, 5-6

O bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa. Mas é preciso ajuntar “numa vida completa”. Porquanto uma andorinha não faz verão, nem um dia tampouco; e da mesma forma um dia, ou um breve espaço de tempo, não faz um homem feliz e venturoso.
Ética a Nicômaco, Livro I, 1098a, 16-19

É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o “terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções”.
Poética, 1449b, 24-8

Aquele que estuda a forma como as coisas se originaram e passaram a existir, quer se trate do estado ou de qualquer outra coisa, terá delas a mais clara visão.
Política, 1252a, 24-5

É evidente, dessa forma, que o estado é criação da natureza … E é uma das características do homem, que somente ele possui, um sentido de bem e de mal, de justiça e de injustiça, e de propriedades semelhantes, sendo que a reunião de seres vivos que possuem esse sentido constitui uma familia e um estado.
Política, 1253a, 2-18.


A noção de estado é naturalmente anterior à de família ou à de indivíduo, uma vez que o todo deve necessariamente anteceder as partes. Se se destrói o homem como um todo, não se pode dizer que um pé ou mão permaneceu, a menos que se olhe para eles como se fossem feitos de pedra – pois certamente estarão mortos. Só se pode entender uma coisa como ela é em função de sua engenhosidade e de sua capacidade de realizá-la.

E quando não mais possui essa engenhosidade ou essa capacidade, não permanece igual, simplesmente tem o mesmo nome. Dessa forma, é incontestável que uma cidade precede um indivíduo. Pois se um indivíduo não for suficiente em si mesmo para constituir um governo perfeito, ele simplesmente será em relação a uma cidade aquilo que outras partes são em relação a um todo. E qualquer um que não seja capaz de viver em sociedade, ou não precise fazê-lo, por ser suficiente em si mesmo, deve ser ou uma besta ou um deus.

Todos têm, portanto, um impulso natural para se associar a outros dessa maneira, e quem quer que seja que tenha fundado a primeira sociedade civil produziu o maior bem para a humanidade. Dessa forma, o homem é a melhor de todas as criaturas vivas, assim como, sem leis e justiça, seria o pior. Pois nada é tão difícil de erradicar quanto a injustiça perpetrada pela força. Mas o homem nasce com essa força – que é tanto prudência quanto valor – e ela pode ser usada tanto para fins justos quanto para objetivos injustos.

Aqueles que abusarem dessa força serão os seres mais iníquos, concupiscentes e insaciáveis jamais imaginados. Por outro lado, a justiça é o que aproxima os homens do estado; pois a administração da justiça, que consiste em determinar o que é justo, é o princípio da ordem na sociedade política.
Política, 1253a, 25-40


Os democratas sustentam que a democracia é o que a maioria decide, aqueles que são a favor das oligarquias acreditam que os que possuem mais riqueza deveriam ser os responsáveis pelas decisões. Mas ambas as formas são injustas. Se seguirmos o que é proposto por poucos, logo teremos uma tirania. Pois se uma pessoa possui mais do que quaisquer outros, de acordo com a justiça oligárquica, este homem isoladamente tem direito ao poder supremo.

Por outro lado, se a superioridade numérica prevalecer como critério, perpetrar-se-á a injustiça mediante o confisco das propriedades dos ricos, que estarão em minoria e sem direito à palavra. A noção de igualdade, à qual ambas as partes aquiescerão, deve portanto derivar da definição de direito comum a ambas.
Política, 1318a, 19-28

O que precede basta para provar que os seres matemáticos não são substâncias em grau mais eminente do que os corpos; que não são anteriores aos sensíveis quanto ao ser, mas apenas quanto à definição; e que não podem ter em lugar algum uma existência separada. Mas, como tampouco é possível que existam nos sensíveis, torna-se evidente que não existem em absoluto, ou existem nalgum sentido especial e restrito. Com efeito, “existir” tem muitas significações.
Metafísica, 1077b, 12-17


Naquilo que diz respeito aos corpos naturais, alguns têm vida e outros não. Isso equivale a dizer que alguns são capazes de nutrirem a si mesmos, de crescer e de se decompor. Dessa forma, todos os corpos naturais vivos, que devem ser substância, devem também ser uma substância complexa. Mas, já que é um corpo de natureza específica – ou seja, que contém vida – o corpo não pode ser alma.

Porque um corpo é um sujeito, e não alguma coisa atribuída a um sujeito, e dessa forma é matéria. A alma é portanto substância no sentido de que é a forma de um corpo natural, que é potencialmente dotado de vida. Substância nesse sentido é realidade. Dessa forma, a alma é a realidade do corpo vivo. Mas a realidade tem dois sentidos, semelhantes à posse do conhecimento e ao uso do conhecimento. A realidade de que estamos falando é similar à posse do conhecimento. Porque tanto dormir quanto acordar exigem a presença de uma alma – e acordar equivale ao uso do conhecimento, enquanto dormir se assemelha à posse do conhecimento sem que se o utilize.
De anima, 412a, 17-26

É óbvio que há causas, e muitas. São elas descobertas quando começamos a indagar: “Por que isto aconteceu?” Isso nos faz retroceder a diversas questões básicas. Quando nos defrontamos com coisas imutáveis, resta-nos a pergunta: “O que é isto?” Por exemplo, em matemática tudo se resume à definição de uma linha reta ou do número ou de coisa semelhante. Ou em outros casos, poderíamos ser levados a perguntar: “O que provocou essa mudança?” Como, por exemplo: “Por que essas pessoas foram para a guerra?” A resposta nesse caso poderia ser: “Por causa de invasões de fronteira.” Ou poderia ser por conta da finalidade da coisa em si: em outras palavras, lutaram por poder.

Em outra categoria, onde as coisas passam a existir, sua finalidade será a matéria. Evidentemente, essas são as causas. Existem vários tipos diferentes de causa e qualquer um que queira entender a natureza deveria saber como desvendá-las. De fato, há quatro tipos diferentes: matéria, forma, o que quer que seja que provoque a mudança e qualquer que seja a finalidade da coisa.
Física, 198a, 14-24

Dessa forma, sendo o movimento eterno, se existe uma causa inicial, ela também deve ser eterna … e nesse caso é suficiente admitir que há apenas uma causa, a primeira a pôr as coisas estacionárias em movimento, e sendo esta eterna se constituirá em princípio de movimento para todas as outras coisas.
Física, 259a, 7-14

Aristóteles escreveu e pensou de forma tão original a respeito de tantas coisas que fatalmente perceberia algumas delas erroneamente:
Aqueles cujas narinas têm extremidades espessas são preguiçosos, tal qual o gado. Aqueles que possuem narizes de pontas grossas são insensíveis, assim como os javalis. Por outro lado, pessoas cujos narizes têm ponta fina irritam-se com facilidade, de maneira muito semelhante aos cães. Contudo, os de nariz de ponta arredondada e chata são magnânimos, da mesma forma que os leões. Pessoas de nariz de ponta fina são como pássaros; mas quando o nariz é curvo e se lança diretamente da testa são passíveis de comportamento despudorado (assim como os corvos).
Fisiognomia, VI, 28-36

Foi grande a contribuição de Aristóteles no estabelecimento da pesquisa e da categorização científicas. Suas realizações são extraordinárias, principalmente se considerarmos grande parte das provas e do material então existentes – alguns dos quais ele registrou:
Diz-se na Arábia que há uma espécie de hiena que paralisa sua presa tão somente com sua presença. Se essa hiena pisar sobre a sombra de um homem, ela não apenas o paralisará, mas o transformará num ser totalmente estúpido …

Existem dois rios na Eubéia. O gado que bebe daquele chamado Cerbes se torna branco e aquele que bebe do outro chamado Neleus adquire a cor preta … O rio Reno corre na direção contrária aos outros rios, dirigindo-se para o norte, onde vivem os alemães. No verão suas águas são navegáveis, mas no inverno congelam-se, de forma que as pessoas podem caminhar sobre elas como se fosse sobre terra.

Sobre coisas maravilhosas ouvidas, 145, 168

domingo, 22 de julho de 2018

Aristóteles VIDA E OBRA - PARTE 4

Quando Aristóteles se viu forçado a fugir de Atenas em 323 a.C., deixou o Liceu a cargo de Teofrasto. Segundo uma fonte, Teofrasto se apaixonara pelo filho de Aristóteles, que fora seu aluno, porém Aristóteles não considerou que essa tradicional ocupação desqualificasse seu sucessor. Teofrasto garantiu a continuidade do Liceu após a partida de seu fundador, e sua Escola Peripatética de filósofos logo começou a viver de acordo com o nome, perambulando por todo o mundo clássico, levando a filosofia aristotélica aonde quer que fosse.

Contudo, foram necessários aproximadamente três séculos após a morte de Aristóteles para que seus trabalhos fossem reunidos na forma em que são hoje conhecidos. Sua obra pode ser dividida em dois grupos – as que escreveu para publicação e as notas das aulas dadas no Liceu (que não eram destinadas a publicação).

Como era inevitável, as primeiras se perderam, e as únicas que chegaram até nós foram as últimas, inicialmente em fragmentos e cobrindo centenas de rolos de pergaminhos, organizados segundo as diferentes obras por Andrônico de Rodes, último líder do Liceu. É a Andrônico que devemos a palavra “metafísica” – título dado a um grupo de obras originalmente sem título que se seguiam aos volumes de física, o que fez com que ele as rotulasse simplesmente como “depois da física”, que em grego antigo se diz “metafísica”.

As obras contidas nessa seção compreendem os tratados sobre ontologia e a natureza última das coisas, assunto que rapidamente se identificou com o rótulo colado a essas obras: metafísica. Essa palavra, portanto, que através dos séculos tornou-se sinônimo da própria filosofia, de início nada tinha a ver com a filosofia por ela descrita. Assim como a própria filosofia, começou com um erro e continuou a florescer como tal desde então.

Durante a era clássica, Aristóteles não era considerado um dos grandes filósofos gregos (ombreado a seus pares Sócrates ou Platão). Na era romana foi reconhecido como o maior lógico, mas o restante de sua filosofia foi em geral ofuscado (ou absorvido) pelo neoplatonismo crescente, o qual, por sua vez, ao longo dos séculos, foi em sua maior parte assimilado pelo cristianismo.

Os pensadores cristãos logo se deram conta da utilidade da lógica aristotélica, e Aristóteles passou a ser reconhecido como a autoridade suprema do método filosófico. A lógica aristotélica persistiria como a base do intenso debate teológico travado durante toda a Idade Média. Os ativos monges intelectuais entregavam-se à busca minuciosa de argumentos lógicos, as mentes mais refinadas utilizando-se dessa prática na caça aos heréticos.

A lógica aristotélica, inquestionável do ponto de vista teológico, tornou-se, assim, parte do cânone cristão. No entanto, paralelamente a esse desenvolvimento cristão europeu do pensamento de Aristóteles, havia um outro, oriental, tão importante quanto o primeiro, e que teria conseqüências profundas sobre a Europa medieval.

Durante os primeiros séculos do primeiro milênio depois de Cristo o corpo principal da obra de Aristóteles permaneceu desconhecido do mundo ocidental. Apenas no Oriente Médio continuaram os eruditos a estudar o pleno alcance de sua filosofia. O século VII testemunharia o surgimento do islamismo, seguido da ampla conquista árabe em todo o Oriente Médio. Os intelectuais islâmicos rapidamente reconheceram os méritos da obra de Aristóteles, na qual não encontravam qualquer conflito com sua fé religiosa, e começaram a interpretá-la segundo seus próprios objetivos. Os ensinamentos de Aristóteles foram logo absorvidos, até o ponto em que quase toda a filosofia islâmica decorreu de interpretações de seu pensamento.

Foram os árabes os primeiros a compreender que Aristóteles era um dos grandes filósofos. Enquanto o mundo ocidental mergulhava na Idade das Trevas, o mundo islâmico continuou a se desenvolver intelectualmente. Prova dessa rica herança são as palavras que recolhemos do árabe, como álgebra, álcool e alquimia, assim como todo o nosso sistema de numeração.

A filosofia aristotélica viria a ser desenvolvida por dois grandes estudiosos islâmicos. Abu Aki Al Hu-say n Ibn Abd Allah Ibn Sana (felizmente conhecido entre nós como Avicena) nasceu na Pérsia no final do século X e se tornaria um dos maiores cientistas-filósofos do mundo islâmico. Sua volumosa obra sobre medicina está entre as melhores já escritas, tentativa nobre de resgatar este assunto da charlatanice de que sempre foi alvo.

Avicena tentou até mesmo reparar o que via como embustes na obra de Aristóteles. Percebeu vários problemas não abordados e chegou a fornecer-lhes respostas tal como Aristóteles teria feito caso os tivesse visto. Suas tentativas de tornar o pensamento aristotélico mais sistemático são magistrais e promovem a aglutinação de várias conclusões isoladas. Infelizmente, grande parte desse trabalho determinou o fim de opções que Aristóteles sempre quisera deixar em aberto, pois sabia que não podíamos saber tudo – Avicena tinha percepção diferente.

O outro grande comentador islâmico de Aristóteles foi Averróis, que viveu na Espanha moura, no século XII, e se tornou um misto de médico e filósofo dos califas de Córdoba. Averróis estava convencido de que a filosofia, em particular a filosofia de Aristóteles, era o verdadeiro caminho para a verdade; as revelações místicas eram apenas uma maneira inferior de se chegar a Deus. A razão era muito superior à fé.

Um dia o califa provocou Averróis perguntando-lhe como os céus tinham chegado a existir, o que obrigou o filósofo a confessar que não tinha resposta para essa pergunta. (Postura intelectual nem sempre sábia a ser adotada diante de um califa que emprega alguém para responder a tais questões.)

Felizmente o califa reconheceu a honestidade de Averróis e mandou que fosse buscar a resposta em Aristóteles. Pelos trinta anos seguintes Averróis escreveu uma seqüência infinita de comentários e interpretações sobre a obra de Aristóteles. (Embora inteligentemente jamais tenha apresentado resposta à pergunta original do califa: o próprio califa já havia se pronunciado sobre o assunto.)

Averróis, entretanto, elaborara, ele próprio, várias respostas a Aristóteles, chegando mesmo a fornecer argumentos, a partir de Aristóteles, para fundamentar seus pontos de vista (que, via de regra, contrariavam os de Aristóteles).

Esse era exatamente o tipo de enfoque que agradava aos sábios cristãos medievais, que rapidamente perceberam sua utilidade na perseguição aos heréticos. Traduções dos comentários de Averróis sobre Aristóteles logo começaram a circular em Paris, o grande centro de cultura da época. Mas não demorou muito para que os “averroístas”, como se tornaram conhecidos, se vissem em dificuldades.

Aristóteles podia ter sido aceito pela Igreja, mas esses novos ensinamentos sobre ele eram perigosamente heterodoxos. Diante do conflito entre razão e fé, não poderia haver dúvida quanto à supremacia da fé. Os averroístas acharam-se ameaçados de uma acusação de heresia, e a única forma que tiveram de se defender foi através do uso de argumentos da mesma fonte de sua heresia, ou seja, os escritos de Averróis.

Felizmente, a situação foi reparada por Tomás de Aquino, o maior dentre todos os sábios medievais, que conseguiu costurar um acordo. A razão deve de fato ser livre para operar de acordo com suas próprias leis inexoráveis, mas apenas dentro dos limites da fé. A razão sem a fé não era nada. Tomás de Aquino sentiu-se profundamente atraído por Aristóteles e logo reconheceu seu supremo valor. Ele iria dedicar grande parte de sua vida à harmonização da filosofia de Aristóteles com a da Igreja. No final, conseguiu firmar o aristotelismo como base filosófica da teologia cristã, o que viria a significar a edificação, e a ruína final, do aristotelismo.

A Igreja católica decretou que os ensinamentos de Aristóteles – segundo a interpretação de Tomás de Aquino – eram a Verdade, só podendo ser negados sob pena de heresia. (Situação que permanece em vigor até hoje.) Grande parte da filosofia de Aristóteles dizia respeito ao mundo natural, sendo, portanto, científica. A ciência, como a filosofia, faz pronunciamentos aparentemente verdadeiros – mas que mais tarde revelam-se falsos, necessitando ser modificados à medida que nossa compreensão do mundo avança.

Ao declarar que a obra de Aristóteles era como a Sagrada Escritura, a Igreja se viu numa encruzilhada (e, no caso, nos confins de uma terra plana). O conflito que se avizinhava entre a Igreja e a descoberta científica foi, dessa forma, inevitável.

Aristóteles não é responsável por esse conflito entre razão e fé, não resolvido de forma satisfatória no pensamento ocidental até este século. Mesmo com a morte do pensamento aristotélico, Aristóteles continuou a desempenhar um papel na filosofia moderna. Thomas Kuhn, filósofo da ciência contemporâneo – profundo admirador de Aristóteles –, declarou-se perplexo com o fato de que um gênio supremo também pudesse ser responsável por tantos erros simples.

Por exemplo, a despeito de alguns dos primeiros filósofos terem compreendido que a Terra girava em torno do Sol, Aristóteles permaneceu convicto de que a Terra era o centro do universo – erro que limitou seriamente o conhecimento da astronomia por mais de um milênio e meio. O pensamento científico, da mesma forma, teve seu desenvolvimento retardado pela crença de Aristóteles de que o mundo era constituído de quatro elementos primários: terra, ar, fogo e água. O estudo de Kuhn sobre os erros de Aristóteles levou-o a formular sua noção de paradigma, que revolucionou nosso pensamento sobre a filosofia da ciência (e teve também aplicações muito além desse campo).

Segundo Kuhn, Aristóteles foi levado ao erro em decorrência da maneira como ele e seus contemporâneos viam o mundo: o paradigma de seu pensamento. Os gregos antigos acreditavam que o mundo era constituído essencialmente de qualidades – forma, objetivo etc. Ao adotar essa visão de mundo, eles estavam fadados a chegar a inúmeras conclusões errôneas, tais como as que arruinaram o pensamento de Aristóteles.

A conclusão inevitável a ser tirada da noção de paradigmas de Kuhn é que não pode existir uma forma “verdadeira” de ver o mundo (seja científica seja filosoficamente). As conclusões a que chegamos dependem basicamente dos paradigmas que adotamos: o modo que escolhemos para pensar o mundo. Em outras palavras, não existe verdade definitiva.

Aristóteles VIDA E OBRA - PARTE 3

Em 336 a.C. Filipe da Macedônia foi assassinado, e Alexandre, então com dezesseis anos, ocupou o trono. Depois de prontamente executar todos os pretendentes e fazer algumas campanhas blitzkrieg preliminares através da Macedônia e da Albânia, cruzar a Bulgária e atravessar o Danúbio, descendo depois pela Grécia (reduzindo, en route, Tebas a uma ruína fumegante), Alexandre partiu então para sua campanha de conquista do mundo conhecido.

Na prática, isso incluía o norte da África, a Ásia até Tachkent e o norte da Índia. Felizmente, as lições de geografia de Aristóteles não mencionavam a China, cuja existência permanecia ignorada pelo Ocidente até então. Agora que Alexandre mantinha a mente ocupada com outros assuntos, a presença de Aristóteles não era mais necessária, sendo-lhe permitido retornar a Estagira. Porém, antes de deixar Pela, Aristóteles recomendou a Alexandre seu primo Calístenes para o cargo de intelectual da corte. Esse ato de generosidade lhe seria fatal.

Calístenes era um tanto falastrão, e Aristóteles, antes de partir, advertiu-o sobre os riscos de falar demais na corte. Quando Alexandre partiu em sua campanha de conquista do mundo, levou Calístenes como seu historiador oficial. Mas enquanto abriam caminho através da Pérsia, Calístenes parece ter provocado contra si próprio uma acusação de traição, o que fez com que Alexandre o trancafiasse numa gaiola portátil. Calístenes seguia ao lado do exército, derretendo sob o calor do deserto, o corpo coberto de feridas e insetos repulsivos – até que Alexandre, não suportando mais presenciar tal cena, lançou-o aos leões. Mas, como todos os megalomaníacos bem-sucedidos, Alexandre tinha seu lado paranóico: culpou Aristóteles pela traição de Calístenes.

Diz-se que esteve a ponto de assinar sua execução, mas acabou esquecendo; em vez disso, partiu para conquistar a Índia. Depois de passar cinco anos em Estagira, Aristóteles retornou a Atenas. Em 339 a.C. Espeusipo morreu e o cargo de líder da Academia ficou novamente vago. Dessa vez o indicado a ocupá-lo foi Xenócrates, velho amigo de Aristóteles, tido como indivíduo de caráter convenientemente austero e digno, embora em certa ocasião tenha feito jus à coroa de ouro “por sua proeza etílica na Festa das Ânforas”. (Xenócrates morreria no cargo vinte anos mais tarde: certa noite, trôpego, caiu dentro de um tonel de água.)

Aristóteles irritou-se de tal forma por ter sido novamente preterido que decidiu fundar uma escola rival própria. Instalou-a num grande ginásio fora dos muros da cidade, ao pé do monte Licabeto. O ginásio ficava colado ao Templo de Apolo Lício (Apolo sob a forma de lobo): daí a escola de Aristóteles ter ficado conhecida como Liceu.

O nome resiste até hoje, mais adequadamente na palavra francesa lycée – embora a razão precisa para a grande escola aristotélica ser também celebrada em nomes de salões de dança e teatros não seja tão clara. O Liceu original de Aristóteles certamente ensinava uma ampla gama de assuntos, mas as danças de salão e a arte de representar não alcançariam status acadêmico pleno até o século XX, no centro-oeste americano.

O Liceu parecia-se muito mais com uma universidade moderna do que a Academia. De dez em dez dias, era eleito um novo líder para o conselho de estudantes; havia cursos independentes que competiam pelos alunos; e até mesmo tentativas ocasionais de instituir um calendário de atividades eram feitas.

O Liceu realizou pesquisas em diversas ciências, transmitindo aos alunos as descobertas feitas – ao passo que a Academia estava mais interessada em dar a seus alunos noções básicas de política e direito, a fim de que pudessem se tornar futuros governantes da cidade. O Liceu era o MIT (ou talvez o Instituto de Estudos Avançados) da época, enquanto a Academia se parecia mais com Universidade de Oxford do século XIX ou com a Sorbonne.

As diferenças entre o Liceu e a Academia ilustram de forma adequada as divergências entre as filosofias de Aristóteles e Platão. Enquanto Platão escrevia A República, Aristóteles preferia reunir cópias das constituições de todas as cidades-estados gregas e selecionar os melhores artigos de cada uma. O Liceu era a escola à qual as cidades-estados recorriam quando queriam redigir uma nova constituição. Ninguém tentou proclamar a República.

Infelizmente, o minucioso estudo de Aristóteles sobre política já fora transformado em algo quase supérfluo – por ninguém menos que seu pior aluno, Alexandre. A face do mundo se modificava para sempre: o novo império de Alexandre fazia chegar ao fim a era da cidade-estado, assim como hoje a união européia pode estar a ponto de determinar o final efetivo das nações independentes européias.

Nem Aristóteles nem qualquer um da galáxia de intelectuais reunidos nas escolas de Atenas parecem ter se dado conta dessa grande mudança histórica – omissão que se equipara à dos intelectuais do século XIX, de Marx a Nietzsche, ao deixar de prever a supremacia da América. Aristóteles dava suas aulas enquanto caminhava com os alunos, razão pela qual seus seguidores tornaram-se conhecidos pelo nome de peripatéticos (os que caminham para cima e para baixo).

No entanto, alguns afirmam que receberam esse nome porque o mestre dava suas aulas na galeria coberta do ginásio (conhecida como Peripatos). Atribui-se a Aristóteles a fundação da lógica (mais de 2.000 anos seriam necessários para que surgisse um lógico de seu quilate), além de ter sido um metafísico quase ao nível de Platão e ter superado seu mestre tanto em ética quanto em epistemologia.

(Apesar disso, no quesito originalidade é Platão quem prevalece. Aristóteles pode ter fornecido as respostas, mas foi Platão quem percebeu antes as questões básicas dignas de indagação.) Aristóteles, cujo feito mais significativo deu-se no campo da lógica, chegou a considerá-la o alicerce sobre o qual todo o conhecimento repousa. Platão intuíra que o conhecimento podia ser adquirido pela dialética (discussão, sob forma de conversa, mediante perguntas e respostas). Mas foi Aristóteles quem formalizou e desenvolveu esse


método com a descoberta do silogismo, o qual, segundo ele, mostrava que “quando certas coisas são afirmadas, pode-se demonstrar que alguma coisa que não a afirmada necessariamente se segue”. Por exemplo, se fizermos as duas afirmações seguintes:
Todos os humanos são mortais.
Todos os gregos são humanos.
podemos inferir que:

Todos os gregos são mortais.
O que é logicamente necessário e inegável.

Aristóteles chamou sua lógica de “analitika”, que significa “explicitadora”. Toda ciência ou campo de conhecimento tinha de surgir de um conjunto de princípios básicos ou axiomas. A partir destes, as verdades poderiam ser deduzidas através da lógica (ou explicitadas). Esses axiomas definiam um determinado campo temático, separando-o dos elementos irrelevantes ou incompatíveis. Biologia e poesia, por exemplo, partiam de premissas mutuamente excludentes. Dessa forma, os animais mitológicos não faziam parte da biologia e a biologia não precisava ser escrita sob a forma de poesia.

Esse enfoque lógico liberou campos inteiros de conhecimento, fornecendo-lhes potencial para descobrir conjuntos novos e completos de verdades. Seriam necessários dois milênios antes que essas definições se tornassem um ponto de estrangulamento, restringindo o desenvolvimento do conhecimento humano.

O pensamento de Aristóteles foi filosofia por muitos séculos adiante e na Idade Média chegou a ser considerado um evangelho, o que impediu que continuasse a se desenvolver. Esse mesmo pensamento pode ter construído o edifício intelectual do mundo medieval, mas mal se pode atribuir ao autor a responsabilidade por ele ter se tornado uma prisão.

O próprio Aristóteles jamais teria permitido isso. Suas obras são permeadas pelo tipo de inconsistência que mostra um espírito em permanente questionamento e evolução. Ele preferia investigar o funcionamento real do mundo, ao invés da mera especulação sobre sua natureza. Até mesmo seus erros são, com freqüência, expressos poeticamente – “o ódio é o sangue fervendo em torno do coração”, “o azul do olho vem do céu”. Num estilo tipicamente grego, viu a educação como o caminho pelo qual a humanidade poderia avançar, acreditando que um homem educado diferia do que não possuía educação “tanto quanto os mortos dos vivos”.

No entanto, o lugar que atribuía à educação não era revestido de um otimismo raso: “É um adorno na prosperidade e um refúgio na adversidade.” Ele pode até ter se tornado, no final de sua vida, um pouco pedante, mas há indicações de que tenha tido sua cota de sofrimento. Permaneceu professor durante toda a vida e nunca pleiteou cargo público, porém nenhum homem em toda a história humana jamais teve, e dificilmente terá, influência tão duradoura sobre o mundo – pelo menos até aparecer o monstro que aperte o botão nuclear.

Nisso tivemos sorte, pois Aristóteles parece ter sido um bom homem. Para ele o objetivo da humanidade era a conquista da felicidade, que ele definia como a concretização do melhor de que somos capazes. Mas o que é o melhor de que somos capazes? Na opinião de Aristóteles, a razão é a mais elevada faculdade do homem. Por isso mesmo, “o melhor (e o mais feliz) dos homens ocupa o máximo de seu tempo na mais pura atividade da razão, que é a teorização”. É uma visão demasiado professoral e inocente da felicidade: o hedonismo como uma conquista puramente teórica. Poucos no mundo real subscreveriam essa conclusão.

É discutível que Alexandre, o discípulo de Aristóteles, tenha buscado a concretização do melhor de que era capaz – infligindo sofrimento e morte a milhares sem conta ao longo do processo. No entanto, também se pode argumentar que Aristóteles tentou reprimir esses excessos morais com sua famosa doutrina de que a virtude está no meio.

Segundo essa doutrina, toda virtude se encontra no meio de dois extremos. Infelizmente, isso leva apenas à mediocridade ou aos artifícios verbais. Afirmar que o ato de dizer a verdade é meio caminho entre dizer uma mentira e corrigir uma falsidade é engenhoso, porém eticamente vão. (Aristóteles não postulou isso, mas teria tido necessidade de apresentar algo nessa linha, a fim de preencher a lacuna existente em seu argumento sobre o meio.)

Nos últimos anos de vida de Aristóteles, sua mulher, Pítia, morreu. O casamento obviamente se ajustava a ele, pois em seguida se casou com sua criada Herpilis, que viria a ser mãe de seu primeiro filho, Nicômaco. Em 323 a.C., no entanto, chegaram a Atenas notícias da morte de Alexandre na Babilônia, ao final de uma prolongada competição etílica com seus generais. Os atenienses há muito se ressentiam por estar sob o domínio dos incultos macedônios e, com a morte de Alexandre, deram vazão a seus sentimentos.

Aristóteles, que nascera na Macedônia e obtivera renome por ter sido tutor de seu mais competente rebento, tornou-se vítima dessa onda de antimacedonismo. Foi denunciado como ímpio numa acusação forjada, tendo seu acusador, o hierofante Eurímedon, citado o elogio que escrevera vinte anos antes, quando da morte de seu benfeitor, o eunuco Hérmias de Atarneus.

A multidão exigia vítimas, e Aristóteles teria sido sem dúvida condenado à morte. Mas ele não era feito do mesmo material de Sócrates, não tinha inclinação para o martírio. Sabiamente, abandonou a cidade para evitar que Atenas “assassinasse duas vezes a filosofia”.

Não foi uma decisão fácil no entanto – significava que teria que abandonar seu amado Liceu para sempre. Destituído de sua biblioteca e do acesso a seus arquivos de pesquisa, o velho filósofo isolou se então em uma propriedade herdada de sua mãe, em Cálcis, cidade localizada cinqüenta quilômetros ao norte de Atenas, na extensa ilha de Eubéia, no ponto em que ela se separa do continente por um estreito canal.

As águas desse canal sujeitam-se a um fenômeno inexplicável. Embora o Egeu virtualmente não sofra o efeito das marés, um fluxo rápido corre através do canal, mudando de direção, por razões que não se podem justificar, cerca de doze vezes por dia. Uma antiga lenda local sugere que Aristóteles passou dias quebrando a cabeça à cata de uma explicação para o fenômeno – e quando, pela primeira vez na vida, viu-se derrotado, pulou na água e se afogou.

Fontes históricas mais confiáveis registram que Aristóteles morreu em 322 a.C., aos sessenta e três anos, um ano depois de ter chegado a Cálcis. Diz-se que morreu de uma doença estomacal, embora uma fonte sustente que cometeu suicídio bebendo acônito, veneno extraído do ranúnculo. Na época, esse extrato era eventualmente usado como remédio, o que me sugere uma overdose acidental ou eutanásia auto-administrada, ao invés de simples suicídio. Embora seja perfeitamente possível que sua amargura por ter perdido o Liceu o tenha levado a não mais considerar a vida digna de ser vivida.

O testamento de Aristóteles começa com as palavras imortais: “Tudo ficará bem, mas caso alguma coisa aconteça…” Prossegue dando instruções para a educação dos filhos e alforria a seus escravos. Informa em seguida ao executor do testamento que, caso Herpilis deseje se casar novamente, “não deve ser entregue a alguém sem méritos”. O autor desse documento parece um homem essencialmente prosaico e decente, de caráter não afetado pelo fato de ser veículo do gênio supremo.

Termina seu testamento solicitando que parte do dinheiro por ele deixado fosse usado para erigir estátuas de Zeus e Palas Atena, em tamanho natural, em Estagira. Não consegui detectar sinal dessas estátuas quando finalmente cheguei às pedras dispersas e deslocadas pela chuva da antiga Estagira durante o final de um temporal, naquela tarde pouco feliz, há muitos anos na Grécia. Enquanto vagava pela encosta abandonada pelos deuses, pilhei-me recordando a visão aristotélica sobre a natureza da comédia, segundo a qual a comicidade era meramente uma forma de feiura indolor.

Paralisado pelo frio e diante de uma vista nada bela, compreendi que havia ainda um caminho a percorrer no pensamento de Aristóteles, pelo menos no que diz respeito à comicidade.