quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Kant, considerações importantes

Pergunta: De que trata a Crítica da razão pura?
Resposta: De metafísica.

P: O que é exatamente metafísica? R: Essa palavra começou como um erro e acabou por ser considerada um erro. Nesse meio tempo, foi o principal tópico da filosofia.

P: Isso ainda não responde a pergunta. O que significa metafísica exatamente? R: Nada, segundo a maioria dos filósofos modernos.

P: Bem, o que significava de início? R: Essa palavra foi primeiro usada para fazer referência a certas obras filosóficas de Aristóteles, as que se situavam depois de sua grande obra na área da física, em suas obras reunidas, e que se tornaram conhecidas como "além da física" - que em grego se dizia "meta-física".

P: Mas isso ainda não me diz o que ela é. R: Nessas obras "além da física", Aristóteles dedicou-se à "ciência das coisas transcendendo o que é físico ou natural".

P: E o que quer dizer isso? R: É a ciência que trata dos primeiros princípios teóricos além e acima do mundo físico. Esses são os princípios que governam nosso conhecimento daquele mesmo mundo físico. Em outras palavras, a metafísica diz respeito a tudo que transcende o mundo físico que experimentamos.

P: Mas como sabemos que existe alguma coisa além do mundo físico que experimentamos? R: Não sabemos. Razão pela qual a maioria dos filósofos modernos rejeita a metafísica como um erro.

P: Mas Kant não o fez? R: Kant estava decidido a criar uma nova metafísica. Antes dele, Hume tinha chegado em grande parte à mesma conclusão desses filósofos modernos. Hume pensou que tivesse destruído a possibilidade da metafísica.

P: Como? R: Duvidando de tudo que não pudesse confirmar mediante sua própria experiência. Esse ceticismo extremo excluía tudo em que a humanidade acreditara através dos séculos, mas que jamais experimentara de fato.

P: Por exemplo? R: Deus, por exemplo.

P: Mas o que Hume disse não parecia fazer muita diferença. As pessoas continuaram a acreditar em Deus. R: Sim, mas compreende-se cada vez mais que isso acontecia por conta de um impulso da fé e não como resultado de qualquer experiência direta ou de argumentação racional.

P: Então a "contestação" da metafísica por parte de Hume não fez qualquer diferença? R: Na realidade, fez grande diferença. Principalmente para os cientistas e os filósofos.

P: Como? R: Mediante a exclusão de tudo, à exceção daquilo que podemos comprovar através da experiência, Hume eliminou muito mais que Deus. Ele destruiu, a causalidade, p que era muito mais importante para os cientistas e para os filósofos.

P: Como? R: Segundo Hume, tudo o que sabemos da experiência é que um evento se segue a outro. Não podemos jamais saber se um evento causa o outro. Não podemos ir além da nossa experiência para afirmar isso. Na realidade, jamais experimentamos algum evento causando outro - apenas um evento se seguindo a outro.

P: Então? R: Isso atinge o âmago de todo o nosso conhecimento científico. De acordo com Hume a ciência baseada na causalidade é metafísica- não empírica. Não pode nunca ser comprovada. E a comprovação é a base de nosso conhecimento. Da mesma forma, a filosofia. Segundo Hume, jamais poderemos provar as afirmações da filosofia, a menos que elas sejam resultado de experiência direta.

P: Como por exemplo? R: Assim como na afirmação: "Esta maçã é verde."

P: Mas isso significa que a filosofia praticamente nada pode dizer. R: Exatamente. E essa é a dificuldade extrema que Kant tentou superar em sua filosofia.

P: De que maneira? R: Ele tentou mostrar que, apesar do ceticismo devastador de Hume, ainda era possível construir uma metafísica, que seria a base real de uma forma de conhecimento universal e logicamente necessária — que permaneceria impermeável ao ceticismo de Hume. Kant a estabeleceu pela primeira vez em sua Crítica da razão pura.

P: Então a metafísica de Kant era uma tentativa de estabelecer algum tipo de ciência definitiva - que garantisse a verdade do nosso conhecimento? R: Exatamente.

P: E como ele chegou a isso? R: Kant ressaltou o que chamava sua "filosofia crítica", que significava uma análise profunda da epistemologia - um estudo da própria base sobre a qual nosso conhecimento reside. Segundo Kant, fazemos certos juízos que são indispensáveis a todo conhecimento, juízos que ele classificou como "sintéticos a prior?. Por sintético, ele queria dizer que não eram analíticos e que o conhecimento neles contido não estava implícito no conceito original. Por exemplo, "a bola é redonda" é uma afirmação analítica -porque o conceito "redondeza" está contido no conceito bola. Já "a bola é brilhante" é um juízo sintético, porque diz sobre a bola alguma coisa além do que está contido no conceito original, da mesma forma que uma afirmação empírica.

Como a priori Kant definiu os juízos necessários e universais, que tinham de ser verdadeiros antes de qualquer experiência e que são constituídos somente pelo uso da razão. Diferentemente dos juízos resultantes da experiência, eles não eram particulares e contingentes. Ou seja, não se aplicavam apenas a uma instância e eram destituídos de necessidade lógica - como as afirmações "esse cavalo ganhou o Derby" e "aquele cavalo é marrom".

Como qualquer juízo científico, essas afirmações sintéticas a priori deviam ser irrefutáveis e verdadeiras em termos universais. Em outras palavras, deviam ter a mesma energia e vigor de uma afirmação analítica, embora fossem sintéticas. E deviam se adequar à experiência, permanecendo ao mesmo tempo anteriores a ela. A pergunta básica de Kant era: "Como são possíveis as afirmações sintéticas a priori levava essa pergunta à matemática, à física e à metafísica. A matemática, segundo ele, se relaciona a espaço e tempo. Argumentava que, ao contrário das aparências, o espaço e o tempo são de fato a priori— ou seja, não fazem parte da nossa experiência, sendo uma condição anterior necessária a essa experiência. Não poderíamos ter a experiência sem essas "formas de nossa sensibilidade".

Kant prossegue argumentando que as afirmações da física são juízos a priori. Elas classificam os juízos empíricos (sendo, portanto, sintéticas), mas utilizam conceitos anteriores à experiência (sendo, portanto, a priori). Esses conceitos, ou "categorias de nosso entendimento", como Kant as chamava, assemelham-se muito ao espaço e ao tempo na matemática. As "categorias" são a estrutura essencial de nosso conhecimento, sendo constituídas de coisas como qualidade, quantidade, relação (inclusive a causalidade) e modalidade (assim como existência ou não-existência). Elas não são parte de nossa experiência e, no entanto, não poderíamos ter qualquer experiência sem elas.

Contudo, quando chegamos à metafísica, o oposto se aplica à matemática e à física. A metafísica não tem qualquer relação com a experiência (já que está "além da física"). Isso significa que não podemos aplicar "categorias" como quantidade e qualidade à metafísica porque elas são a estrutura de nosso conhecimento da experiência. Assim, a metafísica se exclui do campo dos juízos sintéticos a priori, não possui base científica. Dessa forma, se tomamos um conceito metafísico, como Deus, não podemos fazer qualquer afirmação científica (ou verificável) sobre ele, pois quaisquer categorias que pudéssemos lhe aplicar só seriam relevantes para a experiência. Falar da existência (ou não existência) de Deus seria igualmente aplicar de forma errônea as categorias.

Foi desse modo que Kant rejeitou a metafísica. Ao fazê-lo, no entanto, construiu seu próprio sistema metafísico alternativo. Da maneira como Kant as viu, as "formas do nosso conhecimento" (espaço e tempo), assim como as "categorias do nosso entendimento" (inclusive a experiência, a necessidade etc), são indubitavelmente metafísicas. Nós podemos considerar que o espaço e a existência estão "lá fora", na física da nossa experiência, mas Kant não pensava assim. Dessa forma, seu argumento contra a metafísica aplica-se igualmente a eles. Não podemos fazer afirmações sintéticas a priori sobre eles.

Eles não são científicos, não são analíticos e não são logicamente necessários: são metafísicos. E se, por outro lado, estão "lá fora" na nossa experiência, certamente não podem ser conceitos a priori de nosso entendimento. A Crítica da razão prática de Kant tenta aplicar um sistema bastante similar à ética. Ao invés de indagar se existem coisas como juízos sintéticos a priori, ele indaga se há regras que a priori governam nossa vontade e que podem, assim, reivindicar a condição de universais. Em lugar das categorias, ele traz à tona um "imperativo categórico" — que não faz parte da experiência moral real, mas que forma a estrutura a priori necessária a ela. Eis como ele explicita esse imperativo categórico: "Aja somente de acordo com um princípio que desejaria fosse ao mesmo tempo uma lei universal."

Assim como as categorias, esse imperativo é puramente formal. As categorias não têm conteúdo empírico, o imperativo categórico não tem conteúdo moral. Esse imperativo categórico pode ser ótimo aparentemente, mas é amplo o suficiente para abranger as moralidades contraditórias do sadomasoquista e do hippie adepto do paz e amor. E também estritamente racional e sugere que deveríamos considerar todos os seres humanos idênticos a nós mesmos em temperamento. Nossa psicologia não é estritamente racional e não consideramos os outros idênticos a nós mesmos em temperamento. Nem desejamos isso - a menos que, por acaso, fôssemos ditadores. Como podemos sequer aplicar esse imperativo, se não pensamos assim ou nos comportamos assim?

Podemos endossar certos princípios universais, mas eles com certeza não abarcarão todos os nossos atos morais. Existem determinados princípios menos fundamentais que não desejaríamos estender às ações morais de cada um. Eu posso me abster do canibalismo e ao mesmo tempo desejar ver o princípio "é errado comer pessoas" aplicado universalmente. Mas se eu me abstiver de assassinar, isso não significa que eu deseje que um policial se abstenha de matar um sequestrador assassino.

E possível argumentar que essas observações tão rígidas não se aplicam, uma vez que o imperativo categórico é tão-somente a estrutura da moralidade. Através de nossas ações morais, nós simplesmente sugerimos princípios universais. Mas esse recuo à formalidade torna o imperativo categórico totalmente vazio. Ele afirma de maneira clara que deveríamos nos comportar da mesma forma que desejaríamos que todas as outras pessoas se comportassem.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Kant VIDA E OBRA - PARTE 5

O homem não é um deus, é um demônio." Concluiu que, "se um homem chegasse a dizer e escrever tudo o que pensa, não haveria nada mais horrível nessa terra de Deus do que o homem". Essas duas últimas citações são curiosamente reveladoras de como ele deve ter visto a si próprio — ao final de uma vida excêntrica, mas em geral sem culpa. (Não se sentia responsável em relação à Lampe, que poderia ter procurado emprego em qualquer outra parte. E podia não ver suas irmãs, mas lhes enviava dinheiro com regularidade.)

A alegria natural de Kant estava agora sendo inundada pela maré cheia de sua vida emocional reprimida. Sentia-se sem dúvida infeliz, mas determinado a permanecer fiel a si mesmo até o fim. Insistia em que não se importava em ser infeliz, atitude coerente com sua filosofia. Na Crítica da razão pura declarara que achava "surpreendente como homens inteligentes pensaram em declarar a felicidade como lei prática universal". A seu ver, a felicidade e a moralidade nada tinham em essência a ver uma com a outra. Podemos nos sentir gratificados quando realizamos um ato de virtude, mas era incapaz de compreender "como um mero pensamento que nada contém de sensível pode produzir uma sensação de prazer ou desprazer".

Essa expressão só poderia vir de um espírito totalmente dissociado das emoções. (Mesmo os mais áridos matemáticos admitem o prazer quando chegam a uma solução complexa.) No entanto, Kant admitia que uma experiência lhe dava prazer com alguma regularidade. Seu vício secreto era caracteristicamente solitário. Gostava de observar os pássaros e costumava esperar com ansiedade pelo seu retorno a cada primavera. Segundo um colega, "a única satisfação que a natureza ainda lhe permitia ... era o retorno de um pássaro que cantava do lado de fora da janela de seu jardim. Mesmo em sua velhice sem alegria, esta ainda lhe restava.

Quando seu amigo ficava longe por muito tempo, dizia: 'Ainda deve estar muito frio nos Apeninos'". Scharftstein, autor de brilhante e emotiva história da vida de Kant, na qual me inspirei intensamente, sugere que os pássaros representavam liberdade para Kant. Liberdade de que, porém? Da tirania de sua própria natureza, certamente. Mas também talvez liberdade do pensamento - aquele mesmo elemento que ele permitira escravizar sua vida, o elemento com o qual pretendeu aprisionar o mundo inteiro dentro de seu sistema. Em sua última década de vida, Kant dedicou-se a uma obra filosófica monumental que jamais terminaria.

Pretendia dar a essa obra o atraente título Ubergang von den metaphysische Anfangsgründe der Naturivissenschafi zur Physik (Transição dos fundamentos metafísicos da ciência natural para a física). Ao contrário das obras anteriores de Kant, essa é em definitivo ilegível. Desafiando a insanidade, vários corajosos especialistas tentaram escalar esse Everest dos Himalaias Metafísicos Alemães, mas retornaram ofegantes e incapazes de comunicar-se de forma coerente. Tanto quanto podemos deduzir dos que sobreviveram a essa obra, nela Kant promove sua estrutura geral a priori a uma ciência da natureza, mostrando em mínimos detalhes como isso pode ser estendido a fim de ser aplicado a ciências específicas.

A ênfase reside aqui nos "mínimos detalhes". Kant tornou-se então uma figura triste, com falência gradativa de suas habilidades maiores. Diz-se que a hipocondria é com freqüência um mecanismo de defesa contra a paranoia. No entanto, apesar da prática diligente e total de seu hobby, a paranoia de Kant começou a dominá-lo. Começou a sentir uma pressão no cérebro e decidiu que era causada por uma rara forma de eletricidade existente no ar. (Segundo ele, essa mesma eletricidade era também responsável pela epidemia de gatos que recentemente eclodira em Copenhague e Viena.) Esse envolvimento com "energia elétrica" é quase sempre associado à esquizofrenia. Mas Kant jamais foi louco. Tratava-se meramente dos nós, que o haviam mantido tão deprimido durante toda a sua vida, que iam se afrouxando. Ele começava a se apagar rapidamente. Os poucos colegas escolhidos e alunos favoritos que eram convidados para jantar observavam num silêncio triste sua mente se dissipar, até que seu novo criado o levasse. Em 8 de outubro de 1803, Kant adoeceu pela primeira vez. Teve um derrame brando depois de comer com exagero seu "queijo inglês" preferido.

Após quatro meses de debilidade crescente, morreu.em 12 de fevereiro de 1804. Suas últimas palavras foram "Es istguf (Está bom). Foi sepultado na catedral e seu túmulo continha a declaração que o fez inclinar-se para o Deus no qual com certeza acreditava, mas que jamais adorou publicamente - palavras que nos levam de volta a um garoto pequeno e vivo ouvindo a bem intencionada mãe que ele tanto venerava: "O céu estrelado acima e a lei moral no interior enchem o espírito de admiração e reverência sempre novas e crescentes quanto mais firme e assídua se mostra nossa reflexão."

Kant VIDA E OBRA - PARTE 4

Kant argumenta: "Uma pessoa que descreve algo como belo insiste em que todos deveriam dar sua aprovação a esse objeto." É evidente a semelhança com o imperativo categórico, mas aqui ele simplesmente não se aplica - a não ser no sentido pessoal e pejorativo. Uma vez mais nos defrontamos com a síndrome da conformidade.

O fato de que eu considero a pintura de Francis Bacon de penetrante beleza não significa que eu espere que todos a considerem da mesma forma. Kant prossegue argumentando que apenas através da unidade e da consistência da natureza a ciência é possível. Essa unidade não pode ser provada, mas deve ser presumida. Relacionada a essa idéia encontra-se a noção de que a natureza é útil. Kant conclui que a utilidade da natureza é "um conceito a priori especial". Como sabemos agora, esse conceito não é necessário à suposição da unidade e da consistência da natureza. E estas últimas estão nesse momento sendo questionadas pela teoria quântica.

Kant insistia que, embora não possamos provar que o mundo tem uma finalidade, devemos olhá-lo "como se" a tivesse. Não negava os aspectos maus, feios e aparentemente sem finalidade do mundo, mas acreditava que juntos representavam muito menos que seus opostos mais elevados em espírito. No século seguinte, Schopenhauer adotaria precisamente a posição contrária— talvez com justificativas mais bem fundadas, embora no final nem a postura otimista nem a pessimista possam de qualquer forma ser endossadas mediante provas e permaneçam em definitivo uma questão de temperamento.

Enquanto isso, Kant persistia em sua rotina infatigável (que ele perseguia com dedicação semelhante à interminável busca de Casanova pelas mulheres e à infindável e divertida caçada etílica de Hemingway, embora perdendo menos plumas no processo). E os cidadãos de Königsberg continuavam a acertar seus ponteiros de acordo com a hora em que Kant começava seu passeio da tarde: exatamente às três e meia. O ponto de vista de Kant de que o tempo existe apenas na mente, e nada tem a ver com a realidade, pode ter tido relação com o fato de ele viver na Prússia Oriental, território limítrofe ao sul e ao oeste com a Polônia, onde se vivia uma hora adiante.

Na fronteira oriental estava a Rússia, que ficava a mais de uma semana do resto da Europa. O povo mais próximo a observar o mesmo horário da Prússia Oriental era o alemão, distante duas fronteiras, cruzando a Polônia para o oeste.

Kant morava na Prinzessinnenstrasse, em uma casa demolida em 1893, onde foi cuidado pelo velho e irritadiço criado Lampe, com quem era capaz de se mostrar igualmente ranzinza. Tudo tinha que ser feito com total correção (exatamente como para Casanova e Hemingway). Lampe chegava até a ter que ajudar seu senhor a se despir todas as noites na ordem correta. Quando Kant ia se deitar usava invariavelmente um gorro no verão e dois no inverno - que podia ser de fato muito intenso em Königsberg, quando o vizinho Báltico congelava.

Da mesma forma que todos os meticulosos tiranos domésticos, Kant estava sempre muito preocupado com o bem-estar espiritual de Lampe. Na verdade, ele declarou que havia reinstalado Deus em sua Crítica da razão prática expressamente para dar a Lampe alguma coisa em que acreditar. E possível que Lampe não tenha agradecido devidamente o gesto: não temos evidência de sua gratidão. Embora seja um pouco mais fácil adivinhar a atitude de Lampe em relação ao método filosófico singular de seu senhor prender as meias - por meio de fios de barbante que passavam pelos bolsos das calças e eram atados a molas encerradas em duas pequenas caixas. (Essa última informação soa bastante ridícula, mas é confirmada por diversas fontes independentes, uma das quais sugeriu que, uma vez que o pai de Kant trabalhava com tiras de couro, talvez tivesse alguma relação com o fato. Significativa ou não, a hipótese continua a ocupar os psicólogos.)

Como tantos dotados de espírito independente e imaginativo, Kant era um hipocondríaco praticante. Na realidade, era tão bom no assunto que era a única pessoa a perceber que tinha algum problema. Jamais se teve notícia, ao longo de toda a sua vida, de que esse homem frágil e pequeno, de compleição espira-lada, tivesse estado doente. Sua hipocondria o mantinha em um regime incansável e sistemático: uma crítica pura e prática do físico.

Um de seus hábitos era respirar apenas pelo nariz, principalmente quando saía para caminhar no inverno gelado. Isso significa que durante o outono, o inverno e a primavera era incapaz de responder a qualquer pessoa que se dirigisse a ele na rua, já que se recusava a abrir a boca para não se resfriar.

Kant teve muita sorte ao publicar suas três grandes Críticas. Durante esse período a situação política na Prússia era de incomum tolerância, característica raramente associada àquele país. É de se duvidar que tivesse conseguido publicar essas obras na maioria dos demais países europeus. Ele reconheceu o fato e dedicou sua Crítica da razão pura a Zedlitz, ministro da educação de Frederico, o Grande.

Conforme convém a um professor provinciano e respeitoso, Kant expressava profunda admiração pelo rei, embora no coração fosse surpreendentemente revolucionário e nada sentisse senão desprezo pelos filósofos franceses que viviam ao redor da corte de Frederico. Sua bete noire preferida era De Ia Mettrie, o encantador autor de clássicos filosóficos eternos como Traité de 1'astbme et de Ia dysenterie e Réflexions philosophiques sur Vorigine des animaux, que algumas vezes escreveu sob o pseudônimo "chinês" de Docteur Fum-Ho-Ham e de quem se diz ter morrido 'pour uneplaisanterie', depois de comer um patê de faisão inteiro, a fim de demonstrar aos médicos alemães da corte um ponto de vista sobre indigestão. Não exatamente o tipo de Kant.

Mas quando Frederico, o Grande, morreu em 1796 e Frederico Guilherme II subiu ao trono, Kant viu se em maus lençóis. Wöllner, um pietista ardoroso, ocupou o Ministério da Educação e Kant foi acusado de utilizar sua filosofia para distorcer a Bíblia. Alguém no ministério tinha evidentemente conseguido lutar com as oitocentas páginas da Crítica da razão pura e descobrir que a obra negava todas as provas da existência de Deus.

Kant foi obrigado a assegurar que não mais daria aulas ou escreveria qualquer outro livro sobre assunto religioso. Escreveu uma carta ao rei oferecendo sua palavra de que obedeceria a essa ordem. Mas quando o rei morreu, em 1797, considerou-se liberado da promessa e retornou ao assunto com redobrado vigor. (Como podemos ver, suas posições sobre mentiras eram passíveis de adaptações, quando surgia a ocasião.)

Kant se aproximava então dos setenta anos, e um longo tempo de prática aperfeiçoara sua hipocondria a ponto de torná-lo um mestre nessa arte. A cada mês mandava alguém ao chefe de polícia de Königsberg para recolher as últimas estatísticas sobre mortalidade, a partir das quais calculava sua própria expectativa de vida.

Convencera-se de que a constipação enevoava seu cérebro e acrescentou uma impressionante variedade de laxantes a seu baú de remédios, que, em tamanho, equivalia a um laboratório. Lia avidamente nos jornais as notícias que davam conta das últimas descobertas médicas, com o objetivo de descobrir se tinha alguma doença nova. Kant era indubitavelmente uma raridade. Não é com freqüência que o homem exibe gênio em seu trabalho e em suas atividades de lazer. Alguns colegas da universidade que tentaram dissuadi-lo dessas atividades foram rapidamente colocados em seus devidos lugares.

Kant sabia muito mais sobre doenças do que qualquer mero professor de medicina na Universidade de Königsberg. Nesse tema, como em todos os outros, não tolerava contradições. (Diferentemente de outros egoístas tão atormentados quanto ele próprio, estava sempre certo e sabia disso.) Até mesmo um admirador foi obrigado a reconhecer: "Ele não tolera ouvir quando outros falam muito, torna-se impaciente ... se alguém apregoa saber qualquer coisa melhor que ele ... A contradição direta o ofendia e - quando se persistia nela - o amargurava." Não se tratava inteiramente de megalomania. Kant simplesmente considerava a verdade sacrossanta. Não era culpa sua que ele sempre soubesse do que falava, enquanto outros se enganavam com tanta freqüência. "Ele não impunha sua opinião a ninguém, mas a obstinação recíproca causava-lhe genuína mágoa."

Os professores da universidade podem ter sido capazes de tolerar esse tratamento, mas ficou provado que era demais para seu criado Lampe, que tinha de conviver com ele o tempo todo. Após décadas como servidor fiel, finalmente começou a beber e teve que ser despedido. Nesse meio tempo, Kant continuava a resistir estoicamente às atenções da família. Continuava a  justificar sua falta de contato com as irmãs explicando que elas não possuíam seu mesmo nível intelectual. (Desde a morte de Newton, é provável que ninguém na Europa satisfizesse esse critério.) Quando pressionado um pouco mais, dizia que eram bastante agradáveis, mas que não tinha nada em comum com elas porque não tinham cultura.

Essa desculpa não era válida com certeza em relação a seu irmão - que chegara a ser um profissional culto, sendo da mesma forma ignorado por ele. Esse irmão ansiava carinhosamente por algum contato social com seu famoso irmão filósofo e escrevia-lhe cartas com regularidade sugerindo que se encontrassem. Sem nenhum sucesso. Num determinado ponto implorou a Kant: "Não posso mais suportar que essa separação continue, somos irmãos." Kant muitas vezes demorava tanto quanto dois anos para responder a essas cartas, argumentando que estivera ocupado demais para escrever antes.(Embora tivesse, é claro, conseguido encontrar tempo para escrever várias centenas de páginas de assombrosa filosofia.)

Na idade de sessenta e oito anos, depois de um período de dois anos e meio sem responder à última carta do irmão implorando para que se vissem, Kant escreveu assegurando-lhe que o manteria em seus pensamentos durante o curto tempo de vida que ainda lhe restava, mas cuidadosamente evitou mencionar qualquer encontro. À medida que envelhecia, Kant tornava-se cada vez mais solitário e misantropo. "A vida é um fardo para mim", confessou finalmente, "estou cansado de carregá-lo.
E se o anjo da morte decidisse vir esta noite e me levasse daqui, ergueria minha mão e diria Deus seja louvado!'" Mas continuava avidamente com seu lazer, que se presume tivesse o objetivo de prolongar sua vida.

Qualquer ideia de abandoná-lo era descartada. Não receava cometer suicídio, mas isso seria um erro moral. Passou a ter cada vez mais pesadelos. Todas as noites, em seu sono, via-se cercado por assaltantes, caçado por assassinos. Os sintomas de paranoia são inequívocos. Declarou: "Todo homem chega quase a odiar o outro, tenta erguer-se acima de seu semelhante, está cheio de inveja, ciúme e outros vícios diabólicos.