quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Kant VIDA E OBRA - PARTE 5

O homem não é um deus, é um demônio." Concluiu que, "se um homem chegasse a dizer e escrever tudo o que pensa, não haveria nada mais horrível nessa terra de Deus do que o homem". Essas duas últimas citações são curiosamente reveladoras de como ele deve ter visto a si próprio — ao final de uma vida excêntrica, mas em geral sem culpa. (Não se sentia responsável em relação à Lampe, que poderia ter procurado emprego em qualquer outra parte. E podia não ver suas irmãs, mas lhes enviava dinheiro com regularidade.)

A alegria natural de Kant estava agora sendo inundada pela maré cheia de sua vida emocional reprimida. Sentia-se sem dúvida infeliz, mas determinado a permanecer fiel a si mesmo até o fim. Insistia em que não se importava em ser infeliz, atitude coerente com sua filosofia. Na Crítica da razão pura declarara que achava "surpreendente como homens inteligentes pensaram em declarar a felicidade como lei prática universal". A seu ver, a felicidade e a moralidade nada tinham em essência a ver uma com a outra. Podemos nos sentir gratificados quando realizamos um ato de virtude, mas era incapaz de compreender "como um mero pensamento que nada contém de sensível pode produzir uma sensação de prazer ou desprazer".

Essa expressão só poderia vir de um espírito totalmente dissociado das emoções. (Mesmo os mais áridos matemáticos admitem o prazer quando chegam a uma solução complexa.) No entanto, Kant admitia que uma experiência lhe dava prazer com alguma regularidade. Seu vício secreto era caracteristicamente solitário. Gostava de observar os pássaros e costumava esperar com ansiedade pelo seu retorno a cada primavera. Segundo um colega, "a única satisfação que a natureza ainda lhe permitia ... era o retorno de um pássaro que cantava do lado de fora da janela de seu jardim. Mesmo em sua velhice sem alegria, esta ainda lhe restava.

Quando seu amigo ficava longe por muito tempo, dizia: 'Ainda deve estar muito frio nos Apeninos'". Scharftstein, autor de brilhante e emotiva história da vida de Kant, na qual me inspirei intensamente, sugere que os pássaros representavam liberdade para Kant. Liberdade de que, porém? Da tirania de sua própria natureza, certamente. Mas também talvez liberdade do pensamento - aquele mesmo elemento que ele permitira escravizar sua vida, o elemento com o qual pretendeu aprisionar o mundo inteiro dentro de seu sistema. Em sua última década de vida, Kant dedicou-se a uma obra filosófica monumental que jamais terminaria.

Pretendia dar a essa obra o atraente título Ubergang von den metaphysische Anfangsgründe der Naturivissenschafi zur Physik (Transição dos fundamentos metafísicos da ciência natural para a física). Ao contrário das obras anteriores de Kant, essa é em definitivo ilegível. Desafiando a insanidade, vários corajosos especialistas tentaram escalar esse Everest dos Himalaias Metafísicos Alemães, mas retornaram ofegantes e incapazes de comunicar-se de forma coerente. Tanto quanto podemos deduzir dos que sobreviveram a essa obra, nela Kant promove sua estrutura geral a priori a uma ciência da natureza, mostrando em mínimos detalhes como isso pode ser estendido a fim de ser aplicado a ciências específicas.

A ênfase reside aqui nos "mínimos detalhes". Kant tornou-se então uma figura triste, com falência gradativa de suas habilidades maiores. Diz-se que a hipocondria é com freqüência um mecanismo de defesa contra a paranoia. No entanto, apesar da prática diligente e total de seu hobby, a paranoia de Kant começou a dominá-lo. Começou a sentir uma pressão no cérebro e decidiu que era causada por uma rara forma de eletricidade existente no ar. (Segundo ele, essa mesma eletricidade era também responsável pela epidemia de gatos que recentemente eclodira em Copenhague e Viena.) Esse envolvimento com "energia elétrica" é quase sempre associado à esquizofrenia. Mas Kant jamais foi louco. Tratava-se meramente dos nós, que o haviam mantido tão deprimido durante toda a sua vida, que iam se afrouxando. Ele começava a se apagar rapidamente. Os poucos colegas escolhidos e alunos favoritos que eram convidados para jantar observavam num silêncio triste sua mente se dissipar, até que seu novo criado o levasse. Em 8 de outubro de 1803, Kant adoeceu pela primeira vez. Teve um derrame brando depois de comer com exagero seu "queijo inglês" preferido.

Após quatro meses de debilidade crescente, morreu.em 12 de fevereiro de 1804. Suas últimas palavras foram "Es istguf (Está bom). Foi sepultado na catedral e seu túmulo continha a declaração que o fez inclinar-se para o Deus no qual com certeza acreditava, mas que jamais adorou publicamente - palavras que nos levam de volta a um garoto pequeno e vivo ouvindo a bem intencionada mãe que ele tanto venerava: "O céu estrelado acima e a lei moral no interior enchem o espírito de admiração e reverência sempre novas e crescentes quanto mais firme e assídua se mostra nossa reflexão."

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