quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Kant VIDA E OBRA - PARTE 4

Kant argumenta: "Uma pessoa que descreve algo como belo insiste em que todos deveriam dar sua aprovação a esse objeto." É evidente a semelhança com o imperativo categórico, mas aqui ele simplesmente não se aplica - a não ser no sentido pessoal e pejorativo. Uma vez mais nos defrontamos com a síndrome da conformidade.

O fato de que eu considero a pintura de Francis Bacon de penetrante beleza não significa que eu espere que todos a considerem da mesma forma. Kant prossegue argumentando que apenas através da unidade e da consistência da natureza a ciência é possível. Essa unidade não pode ser provada, mas deve ser presumida. Relacionada a essa idéia encontra-se a noção de que a natureza é útil. Kant conclui que a utilidade da natureza é "um conceito a priori especial". Como sabemos agora, esse conceito não é necessário à suposição da unidade e da consistência da natureza. E estas últimas estão nesse momento sendo questionadas pela teoria quântica.

Kant insistia que, embora não possamos provar que o mundo tem uma finalidade, devemos olhá-lo "como se" a tivesse. Não negava os aspectos maus, feios e aparentemente sem finalidade do mundo, mas acreditava que juntos representavam muito menos que seus opostos mais elevados em espírito. No século seguinte, Schopenhauer adotaria precisamente a posição contrária— talvez com justificativas mais bem fundadas, embora no final nem a postura otimista nem a pessimista possam de qualquer forma ser endossadas mediante provas e permaneçam em definitivo uma questão de temperamento.

Enquanto isso, Kant persistia em sua rotina infatigável (que ele perseguia com dedicação semelhante à interminável busca de Casanova pelas mulheres e à infindável e divertida caçada etílica de Hemingway, embora perdendo menos plumas no processo). E os cidadãos de Königsberg continuavam a acertar seus ponteiros de acordo com a hora em que Kant começava seu passeio da tarde: exatamente às três e meia. O ponto de vista de Kant de que o tempo existe apenas na mente, e nada tem a ver com a realidade, pode ter tido relação com o fato de ele viver na Prússia Oriental, território limítrofe ao sul e ao oeste com a Polônia, onde se vivia uma hora adiante.

Na fronteira oriental estava a Rússia, que ficava a mais de uma semana do resto da Europa. O povo mais próximo a observar o mesmo horário da Prússia Oriental era o alemão, distante duas fronteiras, cruzando a Polônia para o oeste.

Kant morava na Prinzessinnenstrasse, em uma casa demolida em 1893, onde foi cuidado pelo velho e irritadiço criado Lampe, com quem era capaz de se mostrar igualmente ranzinza. Tudo tinha que ser feito com total correção (exatamente como para Casanova e Hemingway). Lampe chegava até a ter que ajudar seu senhor a se despir todas as noites na ordem correta. Quando Kant ia se deitar usava invariavelmente um gorro no verão e dois no inverno - que podia ser de fato muito intenso em Königsberg, quando o vizinho Báltico congelava.

Da mesma forma que todos os meticulosos tiranos domésticos, Kant estava sempre muito preocupado com o bem-estar espiritual de Lampe. Na verdade, ele declarou que havia reinstalado Deus em sua Crítica da razão prática expressamente para dar a Lampe alguma coisa em que acreditar. E possível que Lampe não tenha agradecido devidamente o gesto: não temos evidência de sua gratidão. Embora seja um pouco mais fácil adivinhar a atitude de Lampe em relação ao método filosófico singular de seu senhor prender as meias - por meio de fios de barbante que passavam pelos bolsos das calças e eram atados a molas encerradas em duas pequenas caixas. (Essa última informação soa bastante ridícula, mas é confirmada por diversas fontes independentes, uma das quais sugeriu que, uma vez que o pai de Kant trabalhava com tiras de couro, talvez tivesse alguma relação com o fato. Significativa ou não, a hipótese continua a ocupar os psicólogos.)

Como tantos dotados de espírito independente e imaginativo, Kant era um hipocondríaco praticante. Na realidade, era tão bom no assunto que era a única pessoa a perceber que tinha algum problema. Jamais se teve notícia, ao longo de toda a sua vida, de que esse homem frágil e pequeno, de compleição espira-lada, tivesse estado doente. Sua hipocondria o mantinha em um regime incansável e sistemático: uma crítica pura e prática do físico.

Um de seus hábitos era respirar apenas pelo nariz, principalmente quando saía para caminhar no inverno gelado. Isso significa que durante o outono, o inverno e a primavera era incapaz de responder a qualquer pessoa que se dirigisse a ele na rua, já que se recusava a abrir a boca para não se resfriar.

Kant teve muita sorte ao publicar suas três grandes Críticas. Durante esse período a situação política na Prússia era de incomum tolerância, característica raramente associada àquele país. É de se duvidar que tivesse conseguido publicar essas obras na maioria dos demais países europeus. Ele reconheceu o fato e dedicou sua Crítica da razão pura a Zedlitz, ministro da educação de Frederico, o Grande.

Conforme convém a um professor provinciano e respeitoso, Kant expressava profunda admiração pelo rei, embora no coração fosse surpreendentemente revolucionário e nada sentisse senão desprezo pelos filósofos franceses que viviam ao redor da corte de Frederico. Sua bete noire preferida era De Ia Mettrie, o encantador autor de clássicos filosóficos eternos como Traité de 1'astbme et de Ia dysenterie e Réflexions philosophiques sur Vorigine des animaux, que algumas vezes escreveu sob o pseudônimo "chinês" de Docteur Fum-Ho-Ham e de quem se diz ter morrido 'pour uneplaisanterie', depois de comer um patê de faisão inteiro, a fim de demonstrar aos médicos alemães da corte um ponto de vista sobre indigestão. Não exatamente o tipo de Kant.

Mas quando Frederico, o Grande, morreu em 1796 e Frederico Guilherme II subiu ao trono, Kant viu se em maus lençóis. Wöllner, um pietista ardoroso, ocupou o Ministério da Educação e Kant foi acusado de utilizar sua filosofia para distorcer a Bíblia. Alguém no ministério tinha evidentemente conseguido lutar com as oitocentas páginas da Crítica da razão pura e descobrir que a obra negava todas as provas da existência de Deus.

Kant foi obrigado a assegurar que não mais daria aulas ou escreveria qualquer outro livro sobre assunto religioso. Escreveu uma carta ao rei oferecendo sua palavra de que obedeceria a essa ordem. Mas quando o rei morreu, em 1797, considerou-se liberado da promessa e retornou ao assunto com redobrado vigor. (Como podemos ver, suas posições sobre mentiras eram passíveis de adaptações, quando surgia a ocasião.)

Kant se aproximava então dos setenta anos, e um longo tempo de prática aperfeiçoara sua hipocondria a ponto de torná-lo um mestre nessa arte. A cada mês mandava alguém ao chefe de polícia de Königsberg para recolher as últimas estatísticas sobre mortalidade, a partir das quais calculava sua própria expectativa de vida.

Convencera-se de que a constipação enevoava seu cérebro e acrescentou uma impressionante variedade de laxantes a seu baú de remédios, que, em tamanho, equivalia a um laboratório. Lia avidamente nos jornais as notícias que davam conta das últimas descobertas médicas, com o objetivo de descobrir se tinha alguma doença nova. Kant era indubitavelmente uma raridade. Não é com freqüência que o homem exibe gênio em seu trabalho e em suas atividades de lazer. Alguns colegas da universidade que tentaram dissuadi-lo dessas atividades foram rapidamente colocados em seus devidos lugares.

Kant sabia muito mais sobre doenças do que qualquer mero professor de medicina na Universidade de Königsberg. Nesse tema, como em todos os outros, não tolerava contradições. (Diferentemente de outros egoístas tão atormentados quanto ele próprio, estava sempre certo e sabia disso.) Até mesmo um admirador foi obrigado a reconhecer: "Ele não tolera ouvir quando outros falam muito, torna-se impaciente ... se alguém apregoa saber qualquer coisa melhor que ele ... A contradição direta o ofendia e - quando se persistia nela - o amargurava." Não se tratava inteiramente de megalomania. Kant simplesmente considerava a verdade sacrossanta. Não era culpa sua que ele sempre soubesse do que falava, enquanto outros se enganavam com tanta freqüência. "Ele não impunha sua opinião a ninguém, mas a obstinação recíproca causava-lhe genuína mágoa."

Os professores da universidade podem ter sido capazes de tolerar esse tratamento, mas ficou provado que era demais para seu criado Lampe, que tinha de conviver com ele o tempo todo. Após décadas como servidor fiel, finalmente começou a beber e teve que ser despedido. Nesse meio tempo, Kant continuava a resistir estoicamente às atenções da família. Continuava a  justificar sua falta de contato com as irmãs explicando que elas não possuíam seu mesmo nível intelectual. (Desde a morte de Newton, é provável que ninguém na Europa satisfizesse esse critério.) Quando pressionado um pouco mais, dizia que eram bastante agradáveis, mas que não tinha nada em comum com elas porque não tinham cultura.

Essa desculpa não era válida com certeza em relação a seu irmão - que chegara a ser um profissional culto, sendo da mesma forma ignorado por ele. Esse irmão ansiava carinhosamente por algum contato social com seu famoso irmão filósofo e escrevia-lhe cartas com regularidade sugerindo que se encontrassem. Sem nenhum sucesso. Num determinado ponto implorou a Kant: "Não posso mais suportar que essa separação continue, somos irmãos." Kant muitas vezes demorava tanto quanto dois anos para responder a essas cartas, argumentando que estivera ocupado demais para escrever antes.(Embora tivesse, é claro, conseguido encontrar tempo para escrever várias centenas de páginas de assombrosa filosofia.)

Na idade de sessenta e oito anos, depois de um período de dois anos e meio sem responder à última carta do irmão implorando para que se vissem, Kant escreveu assegurando-lhe que o manteria em seus pensamentos durante o curto tempo de vida que ainda lhe restava, mas cuidadosamente evitou mencionar qualquer encontro. À medida que envelhecia, Kant tornava-se cada vez mais solitário e misantropo. "A vida é um fardo para mim", confessou finalmente, "estou cansado de carregá-lo.
E se o anjo da morte decidisse vir esta noite e me levasse daqui, ergueria minha mão e diria Deus seja louvado!'" Mas continuava avidamente com seu lazer, que se presume tivesse o objetivo de prolongar sua vida.

Qualquer ideia de abandoná-lo era descartada. Não receava cometer suicídio, mas isso seria um erro moral. Passou a ter cada vez mais pesadelos. Todas as noites, em seu sono, via-se cercado por assaltantes, caçado por assassinos. Os sintomas de paranoia são inequívocos. Declarou: "Todo homem chega quase a odiar o outro, tenta erguer-se acima de seu semelhante, está cheio de inveja, ciúme e outros vícios diabólicos.

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