Pergunta: De que trata a Crítica da razão pura?
Resposta: De metafísica.
P: O que é exatamente metafísica? R: Essa palavra começou como um erro e acabou por ser considerada um erro. Nesse meio tempo, foi o principal tópico da filosofia.
P: Isso ainda não responde a pergunta. O que significa metafísica exatamente? R: Nada, segundo a maioria dos filósofos modernos.
P: Bem, o que significava de início? R: Essa palavra foi primeiro usada para fazer referência a certas obras filosóficas de Aristóteles, as que se situavam depois de sua grande obra na área da física, em suas obras reunidas, e que se tornaram conhecidas como "além da física" - que em grego se dizia "meta-física".
P: Mas isso ainda não me diz o que ela é. R: Nessas obras "além da física", Aristóteles dedicou-se à "ciência das coisas transcendendo o que é físico ou natural".
P: E o que quer dizer isso? R: É a ciência que trata dos primeiros princípios teóricos além e acima do mundo físico. Esses são os princípios que governam nosso conhecimento daquele mesmo mundo físico. Em outras palavras, a metafísica diz respeito a tudo que transcende o mundo físico que experimentamos.
P: Mas como sabemos que existe alguma coisa além do mundo físico que experimentamos? R: Não sabemos. Razão pela qual a maioria dos filósofos modernos rejeita a metafísica como um erro.
P: Mas Kant não o fez? R: Kant estava decidido a criar uma nova metafísica. Antes dele, Hume tinha chegado em grande parte à mesma conclusão desses filósofos modernos. Hume pensou que tivesse destruído a possibilidade da metafísica.
P: Como? R: Duvidando de tudo que não pudesse confirmar mediante sua própria experiência. Esse ceticismo extremo excluía tudo em que a humanidade acreditara através dos séculos, mas que jamais experimentara de fato.
P: Por exemplo? R: Deus, por exemplo.
P: Mas o que Hume disse não parecia fazer muita diferença. As pessoas continuaram a acreditar em Deus. R: Sim, mas compreende-se cada vez mais que isso acontecia por conta de um impulso da fé e não como resultado de qualquer experiência direta ou de argumentação racional.
P: Então a "contestação" da metafísica por parte de Hume não fez qualquer diferença? R: Na realidade, fez grande diferença. Principalmente para os cientistas e os filósofos.
P: Como? R: Mediante a exclusão de tudo, à exceção daquilo que podemos comprovar através da experiência, Hume eliminou muito mais que Deus. Ele destruiu, a causalidade, p que era muito mais importante para os cientistas e para os filósofos.
P: Como? R: Segundo Hume, tudo o que sabemos da experiência é que um evento se segue a outro. Não podemos jamais saber se um evento causa o outro. Não podemos ir além da nossa experiência para afirmar isso. Na realidade, jamais experimentamos algum evento causando outro - apenas um evento se seguindo a outro.
P: Então? R: Isso atinge o âmago de todo o nosso conhecimento científico. De acordo com Hume a ciência baseada na causalidade é metafísica- não empírica. Não pode nunca ser comprovada. E a comprovação é a base de nosso conhecimento. Da mesma forma, a filosofia. Segundo Hume, jamais poderemos provar as afirmações da filosofia, a menos que elas sejam resultado de experiência direta.
P: Como por exemplo? R: Assim como na afirmação: "Esta maçã é verde."
P: Mas isso significa que a filosofia praticamente nada pode dizer. R: Exatamente. E essa é a dificuldade extrema que Kant tentou superar em sua filosofia.
P: De que maneira? R: Ele tentou mostrar que, apesar do ceticismo devastador de Hume, ainda era possível construir uma metafísica, que seria a base real de uma forma de conhecimento universal e logicamente necessária — que permaneceria impermeável ao ceticismo de Hume. Kant a estabeleceu pela primeira vez em sua Crítica da razão pura.
P: Então a metafísica de Kant era uma tentativa de estabelecer algum tipo de ciência definitiva - que garantisse a verdade do nosso conhecimento? R: Exatamente.
P: E como ele chegou a isso? R: Kant ressaltou o que chamava sua "filosofia crítica", que significava uma análise profunda da epistemologia - um estudo da própria base sobre a qual nosso conhecimento reside. Segundo Kant, fazemos certos juízos que são indispensáveis a todo conhecimento, juízos que ele classificou como "sintéticos a prior?. Por sintético, ele queria dizer que não eram analíticos e que o conhecimento neles contido não estava implícito no conceito original. Por exemplo, "a bola é redonda" é uma afirmação analítica -porque o conceito "redondeza" está contido no conceito bola. Já "a bola é brilhante" é um juízo sintético, porque diz sobre a bola alguma coisa além do que está contido no conceito original, da mesma forma que uma afirmação empírica.
Como a priori Kant definiu os juízos necessários e universais, que tinham de ser verdadeiros antes de qualquer experiência e que são constituídos somente pelo uso da razão. Diferentemente dos juízos resultantes da experiência, eles não eram particulares e contingentes. Ou seja, não se aplicavam apenas a uma instância e eram destituídos de necessidade lógica - como as afirmações "esse cavalo ganhou o Derby" e "aquele cavalo é marrom".
Como qualquer juízo científico, essas afirmações sintéticas a priori deviam ser irrefutáveis e verdadeiras em termos universais. Em outras palavras, deviam ter a mesma energia e vigor de uma afirmação analítica, embora fossem sintéticas. E deviam se adequar à experiência, permanecendo ao mesmo tempo anteriores a ela. A pergunta básica de Kant era: "Como são possíveis as afirmações sintéticas a priori levava essa pergunta à matemática, à física e à metafísica. A matemática, segundo ele, se relaciona a espaço e tempo. Argumentava que, ao contrário das aparências, o espaço e o tempo são de fato a priori— ou seja, não fazem parte da nossa experiência, sendo uma condição anterior necessária a essa experiência. Não poderíamos ter a experiência sem essas "formas de nossa sensibilidade".
Kant prossegue argumentando que as afirmações da física são juízos a priori. Elas classificam os juízos empíricos (sendo, portanto, sintéticas), mas utilizam conceitos anteriores à experiência (sendo, portanto, a priori). Esses conceitos, ou "categorias de nosso entendimento", como Kant as chamava, assemelham-se muito ao espaço e ao tempo na matemática. As "categorias" são a estrutura essencial de nosso conhecimento, sendo constituídas de coisas como qualidade, quantidade, relação (inclusive a causalidade) e modalidade (assim como existência ou não-existência). Elas não são parte de nossa experiência e, no entanto, não poderíamos ter qualquer experiência sem elas.
Contudo, quando chegamos à metafísica, o oposto se aplica à matemática e à física. A metafísica não tem qualquer relação com a experiência (já que está "além da física"). Isso significa que não podemos aplicar "categorias" como quantidade e qualidade à metafísica porque elas são a estrutura de nosso conhecimento da experiência. Assim, a metafísica se exclui do campo dos juízos sintéticos a priori, não possui base científica. Dessa forma, se tomamos um conceito metafísico, como Deus, não podemos fazer qualquer afirmação científica (ou verificável) sobre ele, pois quaisquer categorias que pudéssemos lhe aplicar só seriam relevantes para a experiência. Falar da existência (ou não existência) de Deus seria igualmente aplicar de forma errônea as categorias.
Foi desse modo que Kant rejeitou a metafísica. Ao fazê-lo, no entanto, construiu seu próprio sistema metafísico alternativo. Da maneira como Kant as viu, as "formas do nosso conhecimento" (espaço e tempo), assim como as "categorias do nosso entendimento" (inclusive a experiência, a necessidade etc), são indubitavelmente metafísicas. Nós podemos considerar que o espaço e a existência estão "lá fora", na física da nossa experiência, mas Kant não pensava assim. Dessa forma, seu argumento contra a metafísica aplica-se igualmente a eles. Não podemos fazer afirmações sintéticas a priori sobre eles.
Eles não são científicos, não são analíticos e não são logicamente necessários: são metafísicos. E se, por outro lado, estão "lá fora" na nossa experiência, certamente não podem ser conceitos a priori de nosso entendimento. A Crítica da razão prática de Kant tenta aplicar um sistema bastante similar à ética. Ao invés de indagar se existem coisas como juízos sintéticos a priori, ele indaga se há regras que a priori governam nossa vontade e que podem, assim, reivindicar a condição de universais. Em lugar das categorias, ele traz à tona um "imperativo categórico" — que não faz parte da experiência moral real, mas que forma a estrutura a priori necessária a ela. Eis como ele explicita esse imperativo categórico: "Aja somente de acordo com um princípio que desejaria fosse ao mesmo tempo uma lei universal."
Assim como as categorias, esse imperativo é puramente formal. As categorias não têm conteúdo empírico, o imperativo categórico não tem conteúdo moral. Esse imperativo categórico pode ser ótimo aparentemente, mas é amplo o suficiente para abranger as moralidades contraditórias do sadomasoquista e do hippie adepto do paz e amor. E também estritamente racional e sugere que deveríamos considerar todos os seres humanos idênticos a nós mesmos em temperamento. Nossa psicologia não é estritamente racional e não consideramos os outros idênticos a nós mesmos em temperamento. Nem desejamos isso - a menos que, por acaso, fôssemos ditadores. Como podemos sequer aplicar esse imperativo, se não pensamos assim ou nos comportamos assim?
Podemos endossar certos princípios universais, mas eles com certeza não abarcarão todos os nossos atos morais. Existem determinados princípios menos fundamentais que não desejaríamos estender às ações morais de cada um. Eu posso me abster do canibalismo e ao mesmo tempo desejar ver o princípio "é errado comer pessoas" aplicado universalmente. Mas se eu me abstiver de assassinar, isso não significa que eu deseje que um policial se abstenha de matar um sequestrador assassino.
E possível argumentar que essas observações tão rígidas não se aplicam, uma vez que o imperativo categórico é tão-somente a estrutura da moralidade. Através de nossas ações morais, nós simplesmente sugerimos princípios universais. Mas esse recuo à formalidade torna o imperativo categórico totalmente vazio. Ele afirma de maneira clara que deveríamos nos comportar da mesma forma que desejaríamos que todas as outras pessoas se comportassem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário