Kant estava agora em condições de exercer um cargo na universidade como Privatdozent (professor auxiliar). Esse posto seria ocupado por ele pelos quinze anos seguintes, numa vida acadêmica de incansável diligência. Durante esse período, ensinou principalmente matemática e física e publicou tratados sobre ampla gama de assuntos científicos, inclusive vulcões, natureza dos ventos, antropologia, causas dos terremotos, incêndios, o envelhecimento da Terra e até mesmo sobre os planetas (que em sua previsão seriam todos habitados um dia, sendo que os mais distantes do sol desenvolveriam as espécies de maior inteligência).
No entanto, a inclinação natural de Kant era para a especulação. Continuava a ler filosofia amplamente. No racionalismo, suas idéias eram influenciadas sobretudo por Newton e Leibniz. Embora as grandes conquistas de Newton tenham sido em física e matemática, naquela época esses assuntos ainda eram considerados parte da filosofia: uma espécie de "filosofia natural". O título completo da principal obra de Newton é Philosophiae naturalis principia mathematica (Os princípios matemáticos da filosofia natural).
Kant estudou Newton com profundidade suficiente para propor uma "Nova teoria do movimento e da inércia" que se opunha à visão de Newton. O fato de que o tenha mal interpretado não é relevante: estava sendo levado a especular sobre sistemas que abrangiam todo o universo e tencionava questionar o maior intelecto da época em seu próprio terreno. De acordo com Leibniz, o mundo físico de causa e efeito comprovava a harmonia interna do propósito moral do mundo. A leitura de Leibniz levou Kant a ver a humanidade não apenas como participante da natureza, mas, além e acima disso, como participante da finalidade última do universo.
Ao mesmo tempo o interesse de Kant pela filosofia da ciência conduziu-o à leitura do filósofo escocês Hume. Kant ficou impressionado com a insistência de Hume na experiência como base de todo o conhecimento, o que se ajustava ao enfoque científico. (Pontudo, descobriu-se perturbado pelas conclusões céticas que Hume tirou de seu rígido empirismo. Segundo Hume, tudo que experimentamos é uma seqüência de percepções - e isso significa que noções tais como causa e efeito, corpos e coisas, mesmo a mão controladora do Deus criador, são meras suposições ou crenças.
Nenhuma delas é jamais de fato experimentada. Surpreendentemente, Kant deixou-se tocar também pelo apelo emocional de Rousseau. Primeiro dos românticos, Rousseau foi o menos acadêmico de todos os filósofos, acreditando mais na expressão pessoal através da emoção do que no pensamento racional. Seu clamor por liberdade acabaria sendo forte inspiração para a Revolução Francesa. Kant pode ter sido uma personalidade essencialmente ascética, mas havia algo em Rousseau que vibrou uma corda em suas emoções tão reprimidas. Sob a fachada do frio acadêmico batia o coração de um romântico secreto — e mais tarde isso se tornaria evidente em sua filosofia. Mas, naquele momento, todos esses elementos díspares - Newton, Leibniz, Hume, Rousseau — permaneciam como tais.
Antes de encontrar uma forma de conciliar e absorver essas influências, Kant seria incapaz de começar a criar alguma filosofia original. E a envergadura dessa tarefa iria exigir longo tempo.
Talvez Kant tenha se tornado impaciente — já que agora acontece um episódio estranho. Em lugar de publicar mais uma obra acadêmica séria, Kant escreveu um curioso livro satírico intitulado Os sonhos de um visionário explicados pelos sonhos da metafísica. O "visionário" do título é o excêntrico místico sueco Swedenborg, famoso pelas descrições de suas longas viagens através do céu e do inferno.
Em 1756, Swedenborg havia publicado sua obra-prima em oito volumes, Arcana coelestia (Os segredos do céu). Infelizmente, as vendas não foram bem e, depois de dez anos, apenas quatro exemplares tinham sido vendidos. Um deles, sabe-se agora, foi comprado por Kant. Esses volumes de ocultismo metafísico exerceram profunda influência sobre Kant - o suficiente para inspirá-lo a escrever um volume inteiro satirizando-os. Conforme declara de maneira extravagante na introdução: "O autor confessa com certa humildade que era tão simplório que procurava descobrir a verdade de alguns contos do tipo mencionado.
Ele encontrou como sempre, onde não se tem nada para procurar -, ele não encontrou nada." No entanto, logo se torna claro que o deboche de Kant acerca do "pior de todos os visionários" e dos "diversos mundos de pensamentos etéreos ... extraídos ... de conceitos fraudulentos" não é exatamente o que parece. Por baixo dessa coerente zombaria e de expressões de desprezo intelectual, há um elemento de inegável seriedade em seu interesse por Swedenborg. Ele ansiava por acreditar em metafísica (mesmo que não fosse de maneira tão extrema), mas seu formidável desenvolvimento intelectual começava a fechar essa avenida.
O estilo da escrita de Kant é notoriamente prolixo e difícil, mas todos os relatos comprovam que suas aulas eram o oposto. Seu corpo era tão pequeno e retorcido que apenas sua cabeça coberta pela peruca, e com seus traços precisos e rígidos, era visível por sobre o púlpito. Mas essa cabeça falante era uma fonte de perspicácia, de erudição e idéias fascinantes. As aulas de Kant eram um enorme sucesso e sua fama logo se espalhou, estimulada por seu turbilhão de tratados sobre assuntos científicos.
As famosas aulas de geografia que costumava dar no verão atraíam sempre multidões de fora da universidade. Repetindo-se por mais de trinta anos viriam a firmá-lo como o primeiro professor acadêmico de geografia física, apesar de durante toda a sua vida jamais ter colocado os olhos numa montanha e de provavelmente nunca ter chegado a ver o mar aberto (que ficava a inimaginável distância de trinta quilômetros). Suas descrições vigorosas e penetrantes deram vida a terras distantes sobre as quais, entusiasmadíssimo, lia durante as longas noites de inverno, quando o gélido nevoeiro báltico invadia as ruas da remota e provinciana Königsberg.
Kant começava então a dar também aulas de filosofia e logo se tornou óbvio que tinha feito incursões profundas e extensas pelos territórios hostis da ética e da epistemologia, além de explorar os confins da lógica e, até mesmo, regiões tão distantes da civilização como a metafísica (e sobrevivera para contar a estória). Nesse ínterim, os tratados sobre assuntos mais amenos, como fogos de artifício, defesa militar e a teoria dos céus, continuavam a jorrar de sua pena. Apesar disso, recusaram-lhe duas vezes a cátedra de professor na Universidade de Königsberg, por razões não muito claras, mas que se suspeita contivessem algum elemento de esnobismo provinciano. Ou talvez apenas não gostassem dele. De qualquer forma, Kant com toda certeza gostava de Königsberg.
Quando lhe ofereceram o prestigioso cargo de professor catedrático de poética na Universidade de Berlim, ele o recusou. (O que nos privou da alegria de ler a crítica de Kant aos poetas num estilo de tão grande e deliberada complexidade que teria fatalmente se convertido em leitura essencial do dadaísmo.)
Felizmente, em 1770, as autoridades da Universidade de Königsberg cederam e Kant foi nomeado professor catedrático de lógica e metafísica. Aos quarenta e seis anos, tinha-se tornado, então, cada vez mais crítico em relação a Leibniz e seus discípulos racionalistas, que haviam se transformado na força dominante da filosofia alemã.
O empirismo de Hume parecia incontestável, e de forma relutante ele chegou a se deixar convencer pelo seu ceticismo. Objetos, causa e efeito, continuidade, até mesmo o eu, todas essas noções pareciam falaciosas, permanecendo além do campo da nossa experiência, única fonte segura do nosso conhecimento. Kant aceitava isso porque lhe parecia intelectualmente irrefutável, mas não estava satisfeito com a esterilidade dessa situação. Parecia não haver mais espaço para o prosseguimento da filosofia. Seria de fato o fim?
Um dia, então, quando estudava a Investigação sobre o entendimento humano, de Hume, Kant "acordou de seu sono dogmático". Num lampejo de inspiração viu como podia construir um sistema e responder ao ceticismo destrutivo de Hume, que ameaçara destruir a metafísica para sempre.
Durante onze anos, Kant nada publicou, mas continuou trabalhando em sua filosofia. Já havia, por essa época, começado a viver uma vida de extrema regularidade e, durante esse período, sua constância de hábitos começava a alcançar status de lenda. Nas palavras de Heine: "Despertar, tomar café, escrever, dar aula, jantar, caminhar, cada coisa tinha seu horário estabelecido. E quando Immanuel Kant, em seu casaco cinzento, bengala na mão, surgia à porta de sua casa e caminhava em direção à pequena avenida repleta de tílias, ainda hoje denominada 'O passeio do filósofo', os vizinhos sabiam que o relógio marcava exatamente três e meia.
E assim ele passeava para cima e para baixo, em qualquer estação; e quando o tempo estava escuro ou as nuvens cinzentas ameaçavam chuva, via-se seu velho criado Lampe seguindo-o penosamente e cheio de ansiedade, com um enorme guarda-chuva debaixo do braço, como um símbolo da Prudência." Diz-se que em apenas uma célebre ocasião Kant quebrou sua rotina — no dia em que começou a ler o Emile, de Rousseau, quando se deixou absorver de tal forma que, para terminá-lo, perdeu seu passeio. Só mesmo as declarações de emoção romântica de Rousseau poderiam fazê-lo esquecer sua rotina. Mas esses sentimentos não eram suficientes para provocar qualquer ruptura séria em hábitos de uma vida inteira.
Embora Kant tenha considerado duas vezes durante esses anos a hipótese de se casar, em ambas as ocasiões demorou tanto a se definir que, na hora em que se decidiu (a favor, nos dois casos), uma das damas já havia se casado com outro e a segunda mudado para outra cidade. Kant não era homem para ser impelido a qualquer decisão precipitada. No entanto, sua admiração pelas idéias românticas de Rousseau não se limitava à teoria. Anos mais tarde, quando muitas dessas idéias se tornaram realidade, com o adventoda Revolução Francesa, Kant chorou de alegria — sentimento raro na ferozmente conservadora, provinciana e prussiana cidade de Kõnigsberg, e provavelmente ímpar no meio de seu ranzinza estabelecimento universitário.
Em 1781, Kant enfim publicou a Crítica da razão pura, em geral considerada sua obra-prima. No entanto, nem todos se entusiasmaram muito. Quando enviou uma cópia do manuscrito para seu amigo Herz, recebeu-o finalmente de volta lido apenas pela metade. Herz argumentou que continuar a ler a obra de Kant equivaleria a cortejar a insanidade. E podemos nos sentir da mesma forma. Em sua Crítica da razão pura, Kant decidiu eliminar inúmeros argumentos interessantes e exemplos concretos, temendo que sua obra se tornasse demasiado longa. Mesmo assim, na versão traduzida chega-se a mais de 800 páginas. E a maior parte assim: "A proposição apodítica cogita a asseção conforme determinam essas mesmas leis do entendimento, e portanto afirmando-se como a priori, dessa forma, expressa..."
Mesmo na tradução mais refinada isto soa apenas ligeiramente melhor: "Laproposizioneapodittica concepisce ilguidizio assertorio determinato secondo queste legge deWintelletto stresso e, per consequenza, corne affírmativo a priori; ed es prime cosi..." Não há como querer saber como seria em alemão (o milagre é que Hertz tenha conseguido chegar à metade antes de começar a temer por sua sanidade mental). Mas não vamos permitir que isso nos desvie da magnitude do verdadeiro sistema de Kant. Seu objetivo era a restauração da metafísica. Ele concordava com Hume e com os empiristas quanto à inexistência de idéias inatas; mas negava que todo conhecimento fosse originado da experiência.
Os empiristas afirmavam que todo conhecimento deve corresponder à experiência; Kant, de forma brilhante, inverteu a afirmação, declarando que toda experiência deve corresponder ao conhecimento. Segundo Kant, espaço e tempo são subjetivos, são nosso método de perceber o mundo. De certa maneira, são como óculos irremovíveis, sem os quais somos incapazes de dar sentido à nossa experiência. Mas esses não são os únicos elementos subjetivos que nos ajudam a compreender nossa experiência. Kant explicava que existem doze "categorias" (como as chamava), que concebemos por meio de nosso entendimento, trabalhando independentemente da experiência. Essas categorias incluem coisas como qualidade, quantidade e relação.
Essas também são como óculos irremovíveis. Não conseguimos ver o mundo de qualquer outra forma senão em termos de qualidade, quantidade etc. Mas através desses óculos irremovíveis só conseguimos ver os fenômenos do mundo -não conseguimos jamais perceber os verdadeiros númenos, a realidade mesma que sustenta ou propicia o aparecimento desses fenômenos.
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