terça-feira, 7 de agosto de 2018

Kant VIDA E OBRA - PARTE 3

Já se disse que somente um homem que jamais viu uma montanha poderia acreditar que o espaço não existe fora de nós, sendo apenas parte de nosso aparato perceptivo. E o senso comum parece concordar conosco. Mas essas desajeitadas objeções ad hominem nada têm a ver com filosofia, assim me disseram.

Espaço e tempo, e as categorias (que incluem noções como pluralidade, causalidade e existência), só podem ser aplicados aos fenômenos que fazem parte da nossa experiência. Se os aplicarmos a coisas não experimentadas, acabamos provocando "antinomias" - ou seja, contrastando duas afirmações, ambas aparentemente passíveis de comprovação mediante argumento intelectual puro. Dessa forma, Kant destrói todos os argumentos meramente intelectuais em torno da existência (ou não existência) de Deus. Simplesmente não podemos aplicar uma categoria como a existência a essa entidade não empírica.

Como podemos ver, Kant não era a favor de um retorno por atacado à metafísica em sua Crítica da razão pura. Por "razão pura" pretende designar uma razão a priori, ou seja, alguma coisa que se pode saber anteriormente à experiência. Hume havia negado essas entidades transcendentais (quer dizer, aquelas que "transcendem" a experiência). Mas Kant estava convencido de que tinha devolvido esse elemento transcendental/metafísico à filosofia sob a forma de suas "categorias da razão pura". A visão cética de Hume pode parecer simplista e com certeza não pode ser posta em prática se quisermos viver no mundo real. (Sua negação da causalidade de fato reduz o todo da ciência ao status de metafísica.)

A postura de Kant, por outro lado, é sutil e sofisticada ao extremo - mas raramente suplanta a posição de Hume do ponto de vista filosófico. Podemos não ser capazes de experimentar o mundo sem a concepção de espaço, quantidade etc. Mas é difícil argumentar que esses não constituem parte integral daquela experiência ou imaginar como poderiam existir sem ela (ou seja, antes dela).

Por outro lado, o argumento de Kant de que não podemos jamais conhecer o mundo real tem peso considerável. Todas as coisas que percebemos são apenas fenômenos. A coisa em si (o númeno) que sustenta ou propicia o aparecimento desses fenômenos permanece para sempre incognoscível. E não há razão por que ela deveria assemelhar-se de qualquer maneira a nossas percepções. Os fenômenos são percebidos por meio de nossas categorias, que não têm absolutamente nada a ver com a coisa em si, que permanece além da qualidade, quantidade, relação e similares.

Nesse meio tempo, Kant continuava a viver sua vida de rotina rígida, que não excluía um componente de vida social, embora tal atividade fosse sempre uma parte menor em seu cotidiano. Mantinha relações com alguns de seus mais brilhantes alunos, assim como com alguns representantes da faculdade, embora não tivesse chegado a ser íntimo de qualquer deles. (Não se dirigia a ninguém com o informal "du", mesmo depois de décadas de contato social.) O pensamento era sua vida. "Para um erudito, pensar é uma forma de se nutrir, sem a qual, quando está acordado ou sozinho, não pode viver." Seu intento era muito mais conhecer-se do que conhecer qualquer outra pessoa. Mas a tarefa de conhecer a si mesmo provou ser tão difícil para ele quanto o era para outros. "Não me entendo o suficiente", reclamava.

Talvez tivesse medo do que pudesse encontrar. Nesse ponto Scharftstein suscita uma questão fundamental: "Essa coisa-em-si não era simplesmente desconhecida, era proibida; porque se tratava da vida emocional reprimida de Kant, deduduzo, e ele temia que, revelada essa vida, fosse arruinado." Ao contrário da insipidez de Kant, essa semelhança entre sua psique e sua filosofia é digna de destaque. Embora uma vez mais seja difícil dizer de que tipo de destaque ela é digna. Teria a constituição mental de Kant afetado sua filosofia? O argumento de que ela era uma imagem de sua psique é verdadeiro apenas em seu sentido mais bruto.

Qualquer tentativa de ampliar essa imagem pode não fazer justiça às sutilezas intelectuais dessas duas complexas entidades. Kant era bastante consciente de que não tinha amigos. Mas isso não o incomodava. Gostava muito de citar a observação de Aristóteles: "Meus amigos, não tenho amigos."
De fato, ele recomendava essa postura. "A amizade é uma restrição dos sentimentos positivos a um único sujeito, e muito agradável para quem quer que sejam dirigidos, mas é também prova de que faltam disponibilidade e boa vontade."

Psicólogos têm argumentado que a falta de habilidade (ou a falta de vontade) de Kant de estabelecer relações estreitas era sinal de uma infelicidade profunda. Mas ele não parece ter sido infeliz. Ao contrário. Aqueles que o conheceram ressaltaram sua alegria. "A disposição de Kant era, por natureza, para a alegria. Ele via o mundo com olhar prazeroso e transferia sua satisfação às coisas externas. Por isso estava quase sempre disposto a ser feliz", era a observação típica de um de seus colegas.

Sete anos após a publicação de sua Crítica da razão pura, publicou a Crítica da razão prática, na qual reinstala Deus, não mais considerado uma entidade da qual não se pode falar (porque não se encaixava nas categorias). A Crítica da razão prática é dedicada à parte ética do sistema de Kant. Em vez de procurar bases metafísicas para nossa percepção, ele agora as busca para nossa moralidade.

Procurava nada menos que a lei moral fundamental. Mas certamente era impossível descobrir semelhante lei que agradasse a todos. De cristãos a budistas, de liberais a prussianos — todos acreditando no mesmo bem fundamental? Kant achava que era possível descobrir uma lei básica, o que conseguiu colocando de lado o que a maioria considerava a questão principal. Bem e mal, nesse ponto, não o preocupavam. Ele não buscava descobrir alguma essência de todas as interpretações diferentes desses conceitos morais básicos. Salientava que estava à procura dos alicerces da moralidade, muito mais do que de seu conteúdo.

Assim como com a razão pura, também com a razão prática: o que era necessário era um conjunto de princípios a priori como as categorias. Na realidade, Kant finalmente expôs apenas um princípio: seu "imperativo categórico". Essa era a base a priori de toda ação moral: sua premissa metafísica. De forma análoga às categorias da razão pura, ela oferece uma estrutura para nosso pensamento ético (razão prática), embora não lhe proporcione qualquer conteúdo moral específico. O imperativo categórico de Kant afirma: "Aja somente de acordo com um princípio que desejaria que fosse ao mesmo tempo uma lei universal."

Esse princípio levou Kant a acreditar que deveríamos agir de acordo com nosso dever e não conforme nossos sentimentos, o que deu origem a algumas conclusões estranhas. Por exemplo, ele declarou que o valor moral de uma ação não deveria ser julgada segundo suas conseqüências, mas apenas considerando em que medida fora praticada em nome do dever. Isso é
totalmente insensato — se é que a moralidade está relacionada à sociedade e não apenas à honradez individual. Kant pretendia que seu imperativo categórico fosse apenas uma estrutura, vazia de conteúdo moral. Mas não é exatamente assim. Ele ainda contém traços de conteúdo moral. A moralidade do conformismo, para começar.

Do imperativo categórico pode-se inferir que todos deveriam agir da mesma forma, independentemente de seu temperamento ou sua tarefa. Deveria o chefe de um governo agir com os mesmos escrúpulos morais que o prior de um mosteiro? Deveria ao menos tentar? Deveria Churchill ter tentado se comportar como Gandhi? Ou vice-versa? Talvez todos os sistemas levem forçosamente a essas formas rígidas. (Mas sem qualquer sistema ético estaríamos totalmente perdidos - incapazes de proceder a qualquer juízo de valor.)

O sistema ético de Kant também levou-o a acreditar que não deveríamos jamais mentir, apesar das conseqüências que pudessem advir desse fato. Estava bastante consciente das implicações desse ponto de vista, mas, apesar disso, manteve-o. "Dizer uma mentira a um assassino à procura de um amigo seu, refugiado na sua casa, seria um crime."

Devemos acreditar que Kant teria sido capaz de entregar um amigo judeu aos nazistas? Não: tudo que sabemos a seu respeito me deixa convencido de que ele teria seguido nessas circunstâncias os preceitos do dever. Sua mente tão vivaz descobriria rapidamente alguma norma que o proibisse de entregar o amigo. No entanto, essa questão de nunca mentir expõe uma falha evidente no sistema de Kant. A fim de não cometer nenhum erro, ele considerou o tema com excessiva seriedade. Chegou a gastar tempo se torturando sobre a licitude de se concluir uma carta com a saudação costumeira da época "Seu humilde servo". Seria mentira?

Kant insistiu que não era escravo de ninguém e que não tinha qualquer intenção de prestar obediência a seus correspondentes, mas finalmente parece ter cedido em relação a esse ponto. No entanto, em relação a alguns assuntos literários mais sérios permaneceu inflexível. Era contra a leitura de romances, que faziam com que nosso cérebro se tornasse "fragmentário" e enfraqueciam nossa memória. "Pois seria ridículo memorizar romances a fim de relatá-los a outros." (A suposição de que memorizava todos os outros livros que lia não deve nem de longe ser descartada.) Kant despreza nesse ponto o fato de que ler o romance Heloise, de Rousseau, era uma experiência educativa que ele parece ter vivido sem explodir seu pensamento em fragmentos e sem entorpecer sua memória.

Kant gostava de ler poesia, mas somente se esta fosse uma harmonização intelectual de virtude e sentimento. Poesia sem rima era simplesmente prosa enlouquecida. Música era diferente e, no todo, assunto bem mais complexo. Apenas ela era capaz de penetrar a carapaça de repressão que protegia suas emoções não reveladas. E por isso era particularmente severo em relação a ela. Os músicos não tinham caráter, pois o que tocavam reduzia tudo a sentimento. Recomendava a seus alunos evitar ouvir música, já que ela os tornaria efeminados.

No entanto, ele próprio não conseguia parar de frequentar concertos - até o dia em que compareceu a um em memória do filósofo Moses Mendelssohn, que o atingiu como um mero e infindável lamento, e nunca mais foi a um concerto. Detestava música folclórica (como as que sua mãe freqüentemente cantava para ele).

Em. 1790, aos cinqüenta e oito anos, Kant publicou a terceira e última parte de sua obra-prima, a Crítica do juízo, ostensivamente preocupada com juízos estéticos, mas também tratando de teologia (e muito, muito mais). Kant argumenta que a existência da arte pressupõe o artista, e que é através da beleza do mundo que reconhecemos um criador benigno. Conforme ele próprio havia antes sugerido, reconhecemos a obra de Deus nas estrelas do céu, assim como em nossa inclinação interior para fazer o bem.

Como havia feito com sua teoria da percepção e sua teoria ética, Kant procurou estabelecer uma base metafísica para sua teoria do juízo estético. Desejava estabelecer um princípio a priori que tornasse possível nossa apreensão da beleza. Nesse ponto, pisava em terreno mais movediço. É sempre difícil alcançar consenso no que toca à beleza. Alguns consideram os Alpes suíços piegas e encontram sustento espiritual no expressionismo. Outros não.Tais opiniões são aparentemente inconciliáveis. Mas Kant estava decidido a  trazer tudo para dentro dos limites de seu sistema.

Nenhum comentário:

Postar um comentário