segunda-feira, 30 de julho de 2018

Kant VIDA E OBRA - PARTE 1

INTRODUÇÃO

O simples fato de alguma coisa ser impossível não significa que alguém não irá tentar realizá-la. Kant não apenas tentou, mas conseguiu alcançar o impossível. Depois de Hume ter destruído a filosofia, e todas as possibilidades de construção de um sistema metafísico, Kant criou o maior de todos eles. Seu propósito era refutar Hume, mas felizmente ele havia lido apenas a Investigação sobre o entendimento humano, e não o ceticismo mais penetrante do anterior Tratado sobre a natureza, humana. Tivesse Kant lido o Tratado e talvez não houvesse elaborado qualquer sistema. Teria sido lamentável e teria deixado toda uma geração de professores de filosofia alemã do século XIX desempregada.

O sistema de Kant é como a ideia de gravidade de Newton. Não é a resposta final, mas está próximo da forma como ainda vemos o mundo. Não erraremos muito se olharmos o mundo à maneira de Kant. A filosofia de Hume é essencialmente simplista: reduz nossa condição filosófica ao refúgio estéril do solipsismo. Kant, construindo nas areias ilusórias do erro, erigiu um maravilhoso castelo, de imensa engenhosidade e complexidade, capaz de nos manter absortos e cheios de felicidade, com nosso balde e nossa pá, durante as férias inteiras.

É difícil saber o que dizer sobre a vida de Kant. Na prática, ele não viveu (fora da mente). Nada que possa despertar qualquer interesse lhe aconteceu. No entanto, a descrição de uma vida de extremo tédio não necessita ser, ela própria, maçante — conforme foi demonstrado por seu contemporâneo Casanova e, mais recentemente, por Hemingway.


VIDA E OBRA - PARTE 1

Immanuel Kant nasceu em 22 de abril de 1724 na cidade báltica de Kõnigsberg, então capital da isolada província alemã da Prússia Oriental (atualmente Kaliningrado, na Rússia). Seus ancestrais haviam emigrado da Escócia no século anterior e há grande probabilidade de que tivessem algum grau de parentesco com Andrew Cant, notório pregador escocês do século XVII. Consta que Cant teria sido a origem do verbo inglês to cant, que se refere ao "uso de jargão" - traço de família que reapareceria impetuosamente no filósofo.

Na época do nascimento de Kant, a Prússia Oriental se recuperava das devastações trazidas pelas guerras e pela peste, que haviam reduzido a população a menos da metade. Kant foi criado em atmosfera de pobreza e religiosidade. Era o quarto filho da família - constituída de cinco irmãs e um irmão mais novo. O pai, escocês, cortava tiras de couro e decla rava jocosamente "não conseguir nunca equilibrar o orçamento", fosse em casa, fosse no trabalho. Kant manteve sempre atitude respeitosa em relação a ele, indivíduo amável porém acuado financeiramente, e diz-se que quando criança gostava de observá-lo cortando com habilidade pedaços de couro para arreios.

No entanto, de acordo com o psicólogo e filósofo Ben-Ami Scharftstein, dada a destreza do pai, "a inabilidade manual de Kant é, por conseguinte, digna de nota". Seja esse o caso ou não, e de que tipo de nota ele é digno precisamente, a principal e primeira influência na vida de Kant foi sem dúvida sua mãe. Frau Kant era uma alemã totalmente inculta, que se diz ter sido dona de grande "inteligência natural", fato que influenciou de forma especial seu filho Imma-nuel - ou Manelchen, como ela o chamava ("Pequeno Manuel"). Tinha o hábito de levá-lo para passeios no campo e dizer-lhe os nomes das plantas e flores. A noite, costumava mostrar-lhe as estrelas, indicando seus nomes e as constelações a que pertenciam. Era uma mulher piedosa, e seu jeito afetuoso porém austero também desempenhou função educativa na formação do caráter moral de seu filho. Essa dupla insistência em fatos e obrigações morais seria uma faceta de Kant por toda a sua vida, além de exercer papel capital em sua filosofia.

A observação mais tamosa de Kant, enunciada mais de cinqüenta anos depois, remonta aos primeiros dias com sua mãe: "O céu estrelado acima e a lei moral no interior enchem o espírito de admiração e reverência sempre novas e crescentes quanto mais firme e freqüente se mostra nossa reflexão." Kant foi educado num rigoroso ambiente pietista e dos oito aos dezesseis anos frequentou a escola local, onde sua inteligência excepcional e sua aguda sede de saber logo se cansaram da interminável educação religiosa. Seu desgosto com a religião formal permaneceria com ele até o final da vida (na idade madura jamais frequentou a igreja). Apesar disso, conservou muito da postura pietista, com sua crença em um estilo de vida simples e sua adesão à moralidade rigorosa.

Em 1737, sua mãe morreu e teve enterro de pobre. Kant tinha quatorze anos e, segundo ele próprio, por essa época experimentou as primeiras manifestações da sexualidade. Psicólogos já sugeriram que a perda da mãe que tanto amava nesse estágio da puberdade fez com que se sentisse culpado e reprimisse seus desejos sexuais. Ou foi esse o caso ou os desejos simplesmente desapareceram. Qualquer que tenha sido a causa, daí em diante Kant viveria uma vida de repressão sexual que
assumiria proporções heróicas.

Aos dezoito anos foi admitido na Universidade de Kõnigsberg como estudante de teologia. No início recebeu ajuda financeira da igreja pietista local, mas colaborava para seu próprio sustento dando aulas para alguns colegas mais atrasados. Logo se cansou da teologia e começou a demonstrar enorme interesse pela matemática e pela física. Leu Newton, que abriu seus olhos para as implicações filosóficas das novas descobertas da ciência e para os grandes progressos então alcançados em todas os setores desse campo, da astronomia à zoologia. A ciência baseada na experiência só podia ser acomodada numa filosofia empirista, ou seja, uma filosofia que baseasse nosso conhecimento do mundo na experiência.

Em 1746, quando contava vinte e dois anos, seu pai morreu. Ele próprio, o irmão e as cinco irmãs mais jovens foram deixados sem centavo. As irmãs caçulas foram entregues a uma família pietista, as mais velhas foram trabalhar como camareiras. Kant tentou sem sucesso um emprego numa escola local e foi forçado a abandonar a universidade sem obter o diploma. Nos nove anos seguintes Kant se manteve dando aulas particulares para famílias ricas nas áreas rurais vizinhas. Por algum tempo foi contratado pelo conde e Condessa Keyserling (família aristocrática que mais tarde iria gerar o pseudofilósofo Hermann Keyserling, cujas idéias elevadas, porém falsas, seriam o grande consolo das desiludidas matronas da sociedade após a Primeira Guerra Mundial).

Sempre que conseguia algum dinheiro extra, Kant o remetia a suas irmãs menos afortunadas, hábito que conservou por toda a vida. Além desses gestos de generosidade, porém, não mantinha qualquer contato pessoal com a família. Não em função de qualquer atitude esnobe de sua parte, mas, segundo se alega, devido à "natural austeridade e objetividade de seu caráter", o que se tornaria um traço pessoal do filósofo em sua vida futura. Suas cinco irmãs continuariam a residir em Königsberg (cidade de apenas 50.000 habitantes) durante todo o tempo de vida do filósofo, mas ele não se encontrou com nenhuma por mais de vinte e cinco anos.

Quando finalmente uma delas veio visitá-lo, ele nem sequer a reconheceu. Quando lhe informaram quem era, desculpou-se junto aos companheiros por sua falta de cultura. Kant pode não ter sido esnobe, mas ficou conhecido por sua incapacidade de suportar os tolos. Até mesmo em sua própria família, tudo indica. No entanto, esse incidente traz à tona um detalhe curioso. A irmã de Kant devia ter mais que uma semelhança passageira com a mãe, tanto intelectual quanto fisicamente. E teria mais ou menos a mesma idade da mãe quando esta o criou. Significaria esse gesto que o celebrado amor de Kant pela mãe se tornara tão profundo que ele já não o reconhecia? Sugere-se que Kant, inconscientemente, se ressentia da cadeia repressora - circunstâncias, moralidade, aniquilamento sexual - que a mãe lhe impusera.

Sua incapacidade de reconhecer a irmã (ou de ter de fato alguma coisa a ver com ela) pode perfeitamente estar relacionado a isso, mas não há forma de saber. (A total ausência de vida em Kant atraiu perversamente muito mais atenção dos psicólogos do que a vida comparativamente normal de outros filósofos, embora, a meu ver, a própria noção de normalidade nesse campo seja um ponto discutível.)

Kant pode ser sido indiferente em relação à sua própria família, mas parece ter desfrutado a vida no meio das famílias ricas que o contratavam como professor. Sua aparência era bastante excêntrica, como seu próprio caráter. Tinha menos de um metro e meio e sua cabeça era desproporcional em relação ao resto do corpo. Sua estrutura lembrava a rosca de um saca-rolhas e fazia com que o ombro esquerdo se inclinasse para a frente, o direito se curvasse para trás e a cabeça tendesse a pender para um lado. Vestido com roupas puídas e praticamente sem nenhum pfenning no bolso, não seria exatamente o sucesso do campus na Universidade de Königsberg (que, por seu turno, dificilmente poderia ser considerada centro de qualquer sociedade cosmopolita).

Nesse momento, no entanto, vestido por seus empregadores cm trajes elegantes e encorajado a juntar se aos convidados da família, Kant positivamente floresceu. Logo desenvolveu uma aguda perspicácia, adquiriu um verniz de sofisticada segurança e tornou-se exímio jogador de cartas e de bilhar. Quando a família partia para as férias de verão no campo, Kant os acompanhava, afastando-se quase oitenta quilômetros de Königsberg. (Isso foi o mais longe de sua cidade natal a que ele jamais chegaria em toda a sua vida.) Mas esse período de elegância relativa foi apenas uma fase.

Em 1755, aos trinta e um anos, Kant finalmente se graduou pela Universidade de Königsberg, em parte devido à caridade de um benfeitor pietista. Era tarde para se conseguir um diploma; e, como veremos, Kant era excepcionalmente lento na execução de seus projetos. Por volta dessa idade, quase todos os outros principais filósofos já haviam começado a formular as idéias pelas quais seriam lembrados. Somente duas décadas mais tarde Kant começou de fato a produzir filosofia com originalidade.

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