Quando Aristóteles primeiro dividiu o conhecimento humano em categorias isoladas, possibilitou que nossa maneira de entender o mundo se desenvolvesse de forma sistemática. Nos séculos recentes, porém, esse conhecimento se expandiu a tal ponto que passou a ser seriamente prejudicado por essa categorização. Esses sistemas de pensamento permitiram que o conhecimento se desenvolvesse apenas ao longo de certos caminhos predeterminados, muitos dos quais corriam o risco de se esgotar.
Foi necessária uma abordagem radicalmente diferente. A conseqüência é o moderno mundo da ciência. O fato de que tenhamos demorado mais de vinte séculos para descobrir essas limitações no pensamento de Aristóteles serve apenas para demonstrar sua originalidade sem paralelo. Até mesmo a morte do pensamento aristotélico deu origem a muitas questões filosóficas fascinantes. Quantas mais dessas limitações temos ainda que descobrir? Qual o grau de perigo dessas falhas em nossa forma de pensar? E o que exatamente elas nos impedem de aprender?
VIDA E OBRA - PARTE 1
Em um promontório sobre a aldeia de Estagira, ao norte da Grécia, há uma estátua moderna de Aristóteles de muito pouca inspiração. Seu rosto sem expressão fixa o olhar por sobre as colinas arborizadas e cheias de protuberâncias, em direção ao mar Egeu azulado e distante. A figura do filósofo, em mármore alvíssimo, quase luminescente sob a luz do sol brilhante, ostenta uma toga decotada e sandálias, carregando na mão esquerda um pergaminho levemente danificado. (Diz-se que o dano foi causado por um caçador de souvenirs, um professor de filosofia argentino.) Gravadas na base, em grego, as palavras “Aristóteles, o estagirita”.
Aristóteles nasceu em Estagira em 384 a.C. Apesar da estátua, porém, ele não veio ao mundo na moderna cidade de Estagira. De acordo com o guia turístico, o acontecimento teve lugar na periferia da antiga Estagira, cujas ruínas ainda são visíveis. Depois do encontro frustrante com a estátua, parti em direção a elas. As ruínas ficavam logo abaixo na estrada, informou-me um batman que voltava da escola para casa. Com um floreio da capa negra de plástico indicou a estrada que levava ao litoral.
Depois de caminhar uma hora sob calor intenso, descendo a tortuosa estrada até a costa com trovões nefastos ecoando ao redor das montanhas rochosas, finalmente consegui uma carona até Stratoni, uma estranha mistura de refúgio abandonado à beira-mar e vila de mineração. A velha Estagira estava situada em algum lugar fora da estrada, um pouco mais ao norte, disse-me um carpinteiro que reparava a placa vazia do café fechado.
Logo descobriria que poucos carros passavam por aquela estrada em outubro. As tempestades de outono nessa região, quando finalmente irrompem, são às vezes muito intensas. Por uma hora abriguei-me embaixo de uma estreita saliência de pedra enquanto um aguaceiro torrencial caía em cascata sobre a encosta nua – sem qualquer sinal de ruínas ou veículos visíveis na intensa escuridão que pairava ao meu redor. Ensopado até os ossos, enfureci-me com a estátua que me levara à falsa Estagira.
Tratava-se de uma simples fraude. A moderna cidade de Estagira não pretendia de forma alguma ser conhecida como o local de nascimento de Aristóteles. Razão por que, analogamente, se poderia erigir uma estátua de Joana d'Arc em Nova Orleans Aristóteles nasceu em 384 a.C. na velha Estagira, na Macedônia grega. No século IV a.C., os antigos gregos consideravam a Macedônia mais ou menos como os franceses modernos tendem a considerar a Inglaterra e a América. Mas Estagira não passava de um arremedo de civilização – era uma pequena colônia grega fundada pela ilha egéia de Andros.
O pai de Aristóteles, Nicômaco, fora médico pessoal de Amintas, rei da Macedônia e avô de Alexandre, o Grande. Em conseqüência dessa ligação, que amadurecendo virou amizade, parece ter se tornado um homem rico, adquirindo propriedades ao redor de Estagira e em outras partes da Grécia. O jovem Aristóteles foi educado em ambiente de cultura médica, mas seu pai morreu ainda jovem, sendo ele então levado para Atarneus, cidade grega no litoral da Ásia Menor, onde foi educado por seu primo Próxenos.
Como muitos que herdam fortunas, logo começou a gastar afoitamente o dinheiro que recebera. Segundo um dos relatos, esbanjou em vinho, mulheres e música, terminando tão falido que se viu forçado a alistar-se no exército por algum tempo, após o que voltou a Estagira e começou a estudar medicina. Aos trinta anos, porém, desistiu de tudo e partiu para Atenas a fim de estudar na Academia dirigida por Platão, onde permaneceu por oito anos. Hagiógrafos do final da Idade Média, decididos a transformá-lo em personagem pio, tendem a ignorar ou desacreditar publicamente essas impensáveis calúnias.
Com toda a certeza, existe outra versão para o começo de sua idade adulta. De acordo com essa versão bem mais enfadonha (mas, deve-se admitir, bem mais digna de crédito), ele foi direto para a Academia, aos dezessete anos. No entanto, até mesmo algumas fontes que sustentam essa versão aludem a um breve interlúdio de vinho e Rosas. De toda forma, Aristóteles logo se estabeleceu para um período de estudo intenso na Academia, firmando-se rapidamente como a mente mais requintada de sua geração. A princípio um estudante, logo foi convidado a se tornar um dos colegas de Platão.
Parece que, no começo, venerava Platão. O certo é que absorveu toda a doutrina platônica ensinada na Academia, e sua própria filosofia se alicerçou solidamente em seus princípios. Mas Aristóteles era demasiado brilhante para ser mero seguidor de alguém, ainda que de Platão. Quando percebeu o que parecia uma contradição (ou, que nos perdoem os céus, uma falha) nas obras do mestre, sentiu-se intelectualmente obrigado a apontá-la.
Esse hábito logo começou a irritar Platão e, embora pareça que não tenham discutido, tudo leva a crer que os dois maiores espíritos da época julgaram político manter certa distância. Sabe-se que Platão se referia a Aristóteles como “o espírito sobre pernas” e chamava sua casa “a loja de leitura”. Esta última observação alude à famosa coleção de pergaminhos antigos de Aristóteles, que tinha por hábito comprar tantos pergaminhos raros de obras antigas quantos conseguisse tocar com as mãos e foi um dos primeiros cidadãos a possuir uma biblioteca particular.
O jovem acadêmico evidentemente recebia renda considerável das propriedades por ele herdadas, logo tornando-se conhecido em Atenas por suas maneiras finas e por seu estilo de vida sofisticado (ou, antes, erudito). Diz a tradição que era um indivíduo magro, de pernas longas, que tropeçava nos ss ao falar. Talvez para compensar esse problema passou a vestir-se de maneira elegante, adotando sempre a última moda em sandálias e togas e adornando os dedos com anéis de muito bom gosto.
Mesmo Platão, que não era pobre, invejava a biblioteca de Aristóteles. No entanto, apesar de seu estilo de vida refinado e confortável, suas primeiras obras (hoje perdidas) eram principalmente diálogos em que se discutia a futilidade básica da existência e as alegrias do porvir.
Aristóteles tinha uma inclinação natural para o aspecto prático e científico, o que o levou a analisar as idéias de Platão de maneira cada vez mais realista. Platão acreditava que o mundo particular que percebemos ao nosso redor é mera aparência.
A realidade última acha-se num distante mundo das idéias – que assemelham-se a “formas” ou “ideais”. Os objetos particulares do mundo que percebemos apenas se tornam reais através da participação nesse mundo definitivo das idéias. Dessa forma, um gato específico, assim como o preto que vejo deitado na cadeira, é um gato apenas porque participa da idéia (ou forma) definitiva de gato; e é preto apenas na medida em que participa da idéia (ou ideal) de pretume. A única realidade verdadeira acha-se além do mundo que percebemos – no campo definitivo das idéias.
Enquanto Platão focaliza o universo do ponto de vista essencialmente religioso, Aristóteles tende para o científico. Isso fez com que não se inclinasse a rejeitar o mundo ao nosso redor por considerá-lo irreal. Contudo, continuou a dividir as coisas em substâncias primárias e secundárias. Só que para ele as substâncias primárias eram os objetos específicos do mundo e as secundárias as idéias ou formas.
A princípio ele de fato hesitou ao tentar definir qual dessas substâncias era efetivamente a realidade definitiva, em parte por respeito a Platão. (Seu velho professor, afinal, fora o primeiro a apresentar esta concepção.) Mas pouco a pouco deixava-se cada vez mais convencer de que vivia no mundo real e afastou-se das conclusões de Platão.
Ao longo dos anos, Aristóteles virtualmente inverteu a filosofia de Platão – a despeito disso, suas teorias metafísicas permanecem reconhecidamente uma adaptação da teoria de Platão. Onde Platão via formas como idéias com existência independente, ele via formas (ou “universais”, como os chamava) como essências personificadas na substância do mundo, sem existência independente.
Aristóteles iria apresentar inúmeros argumentos devastadores contra a teoria das idéias de Platão – mas parece não ter avaliado que essas críticas eram igualmente devastadoras para sua própria teoria dos universais. Ninguém mais parecia perceber esse fato tampouco. Em conseqüência disso, foi basicamente sob a forma da doutrina modificada de Aristóteles que as teorias de Platão iriam se tornar a filosofia predominante no mundo medieval.
Felizmente, havia muitos pontos obscuros e contradições aparentes na obra de Aristóteles, que forneceram aos eruditos medievais munição para infindáveis controvérsias suscitadas por diferentes interpretações. Foram essas discussões sobre erros, heresias, falsas crenças cismáticas e falsas interpretações inspiradas no demônio que mantiveram viva a noção de filosofia, quando, para todos os fins e efeitos, a aventura como um todo estava morta (ou, para ser mais preciso, entrara em longo período de hibernação). Embora tenha sido sugerido que muitas dessas controvérsias surgiram de simples erros do clero – conseqüência da inserção por parte dos copistas medievais de suas próprias suposições no lugar de palavras ilegíveis nos originais comidos pelas traças.
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