A vontade de potência
Nietzsche concluiu que a humanidade era impelida por uma vontade de potência. O impulso básico de todos os nossos atos poderiam ser rastreados a partir dessa fonte única. Com frequência esse impulso se transformava em relação à sua expressão inicial, chegava a se perverter, mas estava sempre presente. O cristianismo surgiu para pregar exatamente o oposto, com as ideias de humildade, amor fraterno e compaixão. Mas, na realidade, não passava de uma perversão sutil da vontade de potência.
O cristianismo era uma religião oriunda da escravidão na era romana e jamais perdeu sua mentalidade de escravo. Essa era a vontade de potência dos escravos, ao invés da mais legítima vontade de potência dos poderosos. A vontade de potência de Nietzsche provou ser ferramenta de grande utilidade para ele quando começou a analisar a motivação humana. Atos que anteriormente pareciam nobres, ou louváveis, revelavam-se agora decadentes ou doentios. Mas Nietzsche deixou de responder a duas objeções principais.
Se a vontade de potência era o único instrumento de medida, como podiam os atos que em aparência não seguiam suas injunções imediatas ser outra coisa que não o mal? E dizer que o santo exercia sua vontade de potência sobre si mesmo era sem dúvida tornar o conceito tão flexível a ponto de convertê-lo em algo quase sem sentido. Em segundo lugar, sua noção da vontade de potência era circular: se a tentativa de Nietzsche de compreender o universo se inspirava na vontade de potência, certamente o conceito de vontade de potência se inspirava na tentativa de Nietzsche de compreender o universo.
Mas a última palavra sobre esse conceito penetrante porém perigoso permaneceria com Nietzsche: “A forma desse desejo de potência se modificou ao longo dos séculos, mas sua fonte é ainda o mesmo vulcão ... O que antes fazíamos ‘por amor a Deus’ fazemos agora por amor ao dinheiro ... É isso que no momento confere a mais elevada sensação de potência.”
O eterno retorno
Essa ênfase suprema e incrivelmente romântica sobre a importância do momento pretende ser uma exortação a que vivamos nossas vidas ao máximo. Como ideia poética passageira, tem alguma força. Como ideia filosófica ou moral, é essencialmente superficial. Não resiste à reflexão. O clichê: “Viva a vida ao máximo” pelo menos significa alguma coisa, embora vaga. A ideia do eterno retorno, quando bem examinada, torna-se sem sentido. Temos a lembrança dessas vidas recorrentes? Se tivéssemos, certamente faríamos mudanças. Se não temos, elas são irrelevantes.
Mesmo uma imagem poética sedutora – e esta o é – deve ser mais substancial se pretende ser considerada mais do que mera poesia e usada como um princípio, como pretendia Nietzsche.
O super-homem
No entanto, curiosamente, as descrições de Nietzsche de seu super-homem mostram-no habitando um mundo tão repleto de simplicidade ingênua como qualquer outro das estórias em quadrinhos. O protótipo do super-homem de Nietzsche era Zaratustra – indivíduo extremamente sério e maçante, cujo comportamento exibia sintomas psicóticos perigosos. Admite-se que a história de Zaratustra foi concebida como parábola, mas parábola de quê? Parábola do comportamento. As parábolas que Cristo pregou no Sermão da Montanha parecem infantis e simples – mas, caso se reflita sobre elas, não são nem uma coisa nem outra. São profundas.
A parábola de Zaratustra é infantil e simples, e, caso se reflita sobre ela, continua a sê-lo. Apesar disso, sua mensagem tem grande alcance. Nietzsche prega nada menos que a destruição dos valores cristãos: cada indivíduo deve assumir total responsabilidade por suas próprias ações num mundo sem deus. Deve forjar seus próprios valores em plena liberdade. Não existe sanção, divina ou de outra natureza, para seus atos. Nietzsche previu que esta seria a condição do século XX. Infelizmente, ele também prescreveu a maneira de comportar-nos nessas condições. Os que seguissem suas receitas (as atitudes arcaicas e tediosas de Zaratustra) tornar-se-iam super-homens.
Lamentavelmente, o desenvolvimento do super-homem de Nietzsche superaria a figura da estória em quadrinhos que ele merecia ser. Em Assim falou Zaratustra, Nietzsche anuncia (através do seu herói): “O que é o macaco para o homem? Uma figura cômica ou um estorvo.
O homem parecerá o mesmo diante do super-homem.” Em outra parte, proclama: “O objetivo da humanidade não pode residir em seu fim, mas em seus espécimes mais elevados.” Nesse contexto, ele começa por, vaga e tortuosamente, vincular o super-homem a noções como “nobreza” e “sangue”. Contudo, não falava em termos raciais. Em determinado ponto refere-se “ao Programa de Gotha: uma prisão para burros” e em outra ocasião anuncia: “Quando falo de Platão, Pascal, Spinoza e Goethe, sei então que seu sangue circula no meu.” Um grego, um francês, um judeu português e um alemão – todos ancestrais sanguíneos do super-homem, segundo Nietzsche.
Mais sobre Nietzsche
Nietzsche sofreu duas mortes. Seu espírito morreu em 1889, seu corpo em 1900. Entre essas datas, sua obra adquiriu vida própria – lançando-o da obscuridade quase total para a eminência intelectual mundial. Nietzsche certamente consideraria isso não mais do que lhe era devido, mas sua fama excederia até mesmo suas próprias fantasias megalomaníacas. Estendeuse muito além do campo da filosofia – em grande parte pela grande atração que exercia sobre os escritores.
A lista de figuras relevantes do século XX influenciadas por Nietzsche inclui Yeats, Strindberg, O’Neill, Shaw, Rilke, Mann, Conrad, Freud e incontáveis figuras menores que se achavam simplesmente sufocadas por suas ideias. Tratava-se de uma filosofia diferente: possuía estilo e lucidez. Na verdade, era uma filosofia que se podia ler. E o fato de ela ser escrita em aforismos significava que também se tinha tempo para lê-la (ou trechos dela).
Esse era o problema. Atualmente muitos leem apenas trechos de Nietzsche. Ideias como “vontade de potência” e “super-homem” tornaram-se lugares-comuns e amplamente mal utilizadas. O super homem nietzschiano foi logo apropriado pelo lobby racista. Os antissemitas, depois os fascistas, começaram a pinçar pequenos trechos da obra de Nietzsche, independentemente do contexto. A imprecisão mesma da filosofia de Nietzsche passou a destruí-la.
A filosofia de Nietzsche foi seriamente desacreditada em consequência de sua grotesca utilização durante a primeira metade do século XIX. Por essa razão é quase impossível falar de muitas de suas ideias da forma que ele pretendeu (principalmente suas ideias sobre o superhomem, sobre “disciplina”, sobre “raça” e outras similares). A liberdade poética de boa parte de seus escritos deixou-as por demais vulneráveis a disfarces medonhos.
Felizmente ele também deixou suas observações sobre esses perigosos tópicos abertas ao ridículo, talvez a mais adequada reação da contemporaneidade. No entanto, vale a pena lembrar que Nietzsche formulou suas conclusões sobre o racismo, o antissemitismo e assuntos afins de maneira perfeitamente clara. Como ele próprio observa: “A homogeneização do homem europeu é o maior processo que não pode ser obstruído: dever-se-ia até mesmo acelerá-lo.” Quando os nazistas tentaram cooptá-lo como seu filósofo oficial, e Hitler beijou a mão de Elizabeth Föster-Nietzsche na porta do Arquivo Nietzsche em Weimar, foram os nazistas que penetraram os domínios da loucura maior, não a filosofia de Nietzsche.
CITAÇÕES
Aforismos e frases lapidares
Viva perigosamente.
Qual o melhor remédio? – Vitória.
Aurora, 571
Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos
Além do bem e do mal, 108
A melhor cura para o amor é ainda aquele remédio eterno: amor retribuído.
Aurora, Livro IV, 415
Humano, demasiado humano,
vol.1, seção 9, 483
Aqueles que compreendem alguma coisa em sua dimensão mais profunda, raramente
permanecem fiéis a ela para sempre. Porque expuseram essas profundezas à clara luz do dia; e
o que lá se encontra não é em geral agradável de ver.
Humano, demasiado humano,
ibid., 489
Até os mais corajosos raramente têm a coragem para aquilo que realmente sabem.
Crepúsculo dos deuses:
Máximas e Setas, 2.1
Nesse ponto Nietzsche é tão destemido que demonstra não temer nem mesmo ser atingido por
seus próprios golpes:
Opiniões públicas, ócio privado.
Filosofar
O que vem a ser esta vontade absoluta de verdade? Que sabeis vós a priori do caráter da existência para poder decidir que a desconfiança absoluta apresenta mais vantagens do que a absoluta confiança? E se ambas são necessárias, uma grande confiança e uma grande desconfiança, onde irá a ciência procurar essa convicção absoluta, essa fé que lhe serve de base e que diz que a verdade importa mais do que qualquer outra coisa, incluindo qualquer outra convicção? Essa convicção de base não se pode formar se o verdadeiro e o não verdadeiro se afirmaram sempre – e é esse o caso! – úteis tanto um como o outro.
Portanto, a fé na ciência, essa fé que existe de fato de uma maneira incontestável, só pode ter sua origem num cálculo utilitário; deve ter-se formado, pelo contrário, apesar do perigo e da inutilidade da “vontade da verdade”, apesar do perigo e da inutilidade da “verdade de qualquer maneira”, perigo e inutilidade que a vida demonstra sem cessar. “Querer a verdade” não significa, portanto, “não querer deixar-se enganar”, mas – e não há outra escolha – “não querer enganar os outros nem a si próprio”, o que nos leva para o domínio moral.
Perguntemo-nos seriamente com efeito: “Por que não queremos enganar?”, sobretudo se parece – é bem esse o caso! – que a vida seja vivida em vista da aparência, quero dizer que tenha como objetivo extraviar, iludir, dissimular, ofuscar, cegar, e se, por outro lado, de fato, ela se mostrou sempre sob a sua melhor face do lado dos menos escrupulosos trapaceiros. Interpretado timidamente, esse desejo de não enganar pode passar por um quixotismo, uma pequena sem-razão de entusiasta; mas é também possível que seja alguma coisa pior: um princípio destruidor, inimigo da vida “Querer o verdadeiro” poderia ser, secretamente, querer a morte.
De modo que o porquê da ciência se liga a um problema moral: por que, de uma maneira geral, qualquer moral, quando a vida, a natureza, a história são imorais? Mas ter-se-á desde já compreendido onde quero chegar: é numa fé metafísica que assenta ainda a nossa fé na ciência; pesquisadores do conhecimento, ímpios inimigos da metafísica, nós próprios, ainda ateamos fogo na fogueira acesa por milenária crença, pela fé cristã, crença que foi também a de Platão, para quem o verdadeiro se identifica com Deus e toda a verdade é divina.
Gaia ciência, livro V, seção 344
O que nos torna heroicos? — Ir ao mesmo tempo para além da sua maior dor e da sua maior esperança.
Em que tens fé? — Nisto: em que é necessário determinar de novo o peso de todas as coisas.
O que diz a tua consciência? — Deves transformar-te no homem que és.
Onde se encontra o teu maior perigo? — Na piedade.
O que amas nos outros? — As minhas esperanças.
A quem chamas mau? — Àquele que quer envergonhar sempre.
Que encontras de mais humano? — Poupar a vergonha a alguém.
Qual é a marca da liberdade realizada — Não mais corar de si próprio.
A gaia ciência, livro III,
268-75
Pensar perigosamente
Vós olhais para cima, quando aspirais a elevar-vos. E eu olho para baixo, porque já me elevei. Quem de vós pode, ao mesmo tempo, rir e sentir-se elevado? Aquele que sobe ao monte mais alto, esse ri-se de todas as tragédias, falsas ou verdadeiras. Corajosos, despreocupados, escarninhos, violentos assim nos quer a sabedoria: ela é mulher e ama somente quem é guerreiro.
Assim falou Zaratustra, I,
Do ler e escrever
Assim falou Zaratustra, V,
Do homem superior, 5
O super-homem Zaratustra canta as alegrias do ardor solitário e a perspectiva de ser capaz de fazer tudo de novo. (“O anel do retorno” refere-se à doutrina do eterno retorno de Nietzsche, que propõe que nossas vidas se repetem eternamente.) Desnecessário dizer, esse trecho involuntariamente hilariante e autorrevelador foi escrito visando a uma plateia préfreudiana.
Se algum dia bebi, a largos sorvos, do espumante jarro, rico de especiarias, em que todas as
coisas estão bem misturadas –
Se minha mão, algum dia, deitou o mais distante no mais próximo e fogo no espírito e prazer na dor e o que há de mais malvado no que há de mais bondoso –
Se sou eu mesmo um grão daquele sal redentor que faz as coisas, no jarro, misturarem-se bem –
Pois há um sal que liga o bem com o mal; e também o pior dos males é especiaria digna de
aromatizar e, por fim, fazer transbordar a espuma –
Oh, como não deveria eu almejar a eternidade e o nupcial anel dos anéis – o anel do retorno?
Nunca encontrei, ainda, a mulher da qual desejaria ter filhos, a não ser esta mulher que amo: pois eu te amo, ó eternidade!
Pois eu te amo, ó eternidade!
Assim falou Zaratustra, III,
Os sete selos, 4
A “coisa-em-si” é um conceito sem sentido. Se eu remover todas as relações, todas as “propriedades”, todas as “atividades” de alguma coisa, nada resta. A concretude só foi inventada por nós para se adequar às exigências da lógica. Em outras palavras, com o objetivo de definir, de comunicar. (A fim de juntar a multiplicidade das relações, das propriedades, das atividades.)
Vontade de potência, 558
Outros erros não nos tiranizam dessa forma como condições de vida, mas ao contrário, quando comparados a esses “tiranos”, podem ser isolados e “refutados”. Uma hipótese irrefutável – por que deveria por essa razão ser “verdadeira”? Essa proposição pode perfeitamente insultar os lógicos, que colocam as suas limitações como as limitações das coisas. Mas há muito tempo declarei guerra a esse otimismo dos lógicos.
Vontade de potência, 535
Surpreendentemente, tendo em vista seus ataques ao cristianismo, Nietzsche também afirma:
Vontade de potência, 361
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