domingo, 15 de julho de 2018

Nietzsche VIDA E OBRA - PARTE 4

Após hibernar em Nice, Turim, Roma ou Menton, Nietzsche passava os verões “a 1.500 metros acima do mundo e mais acima ainda dos seres humanos” em Sils Maria, uma aldeia à beira de um lago no Engadine suíço. Hoje, Sils Maria é um pequeno e elegante balneário (a apenas doze quilômetros da estrada para Saint-Moritz), mas ainda se pode ver o quarto simples onde Nietzsche costumava ficar e instalar seu baú de remédios. Ali as montanhas se levantam íngremes das margens do lago em direção ao maciço Bernina, de 4.000 metros de altitude, coberto de neve, que marca a fronteira com a Itália.

Atrás da casa, pode-se enveredar pelas trilhas remotas subindo a encosta da montanha, por onde Nietzsche costumava caminhar e refletir sobre sua filosofia, fazendo pausas para anotar suas conclusões em seus cadernos ao lado de um solitário rochedo escarpado ou uma corrente espumante.

Parte da atmosfera dessa região – os picos remotos, as vistas ondulantes, o sentido de grandeza isolada – penetra o tom de seus escritos. Quando se vê onde Nietzsche desenvolveu grande parte de suas reflexões, alguns de seus pecados e virtudes tornam-se mais compreensíveis.

Na maior parte do tempo, Nietzsche levava uma vida de extremo isolamento, alugando quartos baratos, trabalhando sem parar e comendo em restaurantes de preços módicos – ao mesmo tempo que medicava, da melhor maneira possível, suas alucinantes dores de cabeça e as doenças que o debilitavam. Não era incomum que passasse noites inteiras com ânsia de vômito e se sentisse inválido por três ou quatro dias da semana. Além disso, esse estado de coisas rapidamente se tornou permanente.

No entanto, a cada ano produzia um livro de admirável qualidade. Obras como Aurora, A gaia ciência e Além do bem e do mal contêm críticas soberbas da civilização ocidental, de seus valores e sua psicologia, bem como de seus dilemas. Seu estilo permanece claro e expressa um mínimo de ideias incoerentes. Pode não ter sido filosofia sistemática, mas era com certeza um filosofar do mais alto nível.

Muitos (na realidade, a maioria) dos valores fundamentais do homem e da civilização ocidentais foram testados e considerados deficientes. Conforme ele mesmo manifestou em suas anotações inéditas: “O cristianismo chega ao fim – destruído por sua própria moralidade (que não pode ser substituída), uma moralidade que acaba por se ver obrigada a negar até mesmo a existência do seu próprio Deus.

O senso de veracidade, desenvolvido ao máximo pelo cristianismo, deixa-se contaminar pelas falsidades e pela desonestidade de todas as interpretações cristãs do mundo e da história. Salta de ‘Deus é a verdade’ para ‘Tudo é falso’.” Nunca houve melhor trabalho de demolição – embora boa parte do trabalho de demolição puramente filosófica já tivesse sido feito havia mais de um século por Hume. (Mas era necessário fazê-lo mais uma vez por conta do ressurgimento dos sistemas metafísicos alemães.)

Durante a década de 1880, Nietzsche continuou a trabalhar solitariamente, desconhecido e não lido, pressionando-se de maneira cada vez mais cruel à medida que considerava sua solidão extrema e sua falta de reconhecimento cada vez mais insuportáveis. Em 1888, o erudito judeu dinamarquês George Brandes começou a fazer palestras sobre a filosofia de Nietzsche na Universidade de Copenhague. Infelizmente, já era tarde. Em 1888 concluiu nada menos que quatro livros, e a loucura começou a aparecer. Ele era um grande espírito e sabia disso: era imperativo que o mundo o soubesse também.

Em Ecce homo ele descreve Assim falou Zaratustra como “o mais elevado e mais profundo livro existente” – declaração que chega aos limites dos altímetros críticos, assim como da ingenuidade. Como se isso não bastasse, seguem-se capítulos intitulados “Por que sou tão sábio”, “Por que escrevo tão bons livros” e “Por que sou um Destino”, nos quais dá conselhos a respeito do álcool, endossa o cacau sem gordura e elogia seus hábitos intestinais.

O estilo bombástico e a autoabsorção de Zaratustra reapareciam com uma vingança – a mania. Em janeiro de 1889 chegou o fim. Teve um desmaio enquanto caminhava pela rua em Turim e, em lágrimas, lançou os braços ao redor do pescoço de um cavalo que acabara de ser chicoteado pelo condutor de uma carruagem. Nietzsche foi levado a seu quarto, onde escreveu cartões postais para Cosima Wagner (“Eu te amo, Ariadne”), para o rei da Itália (“Meu querido Umberto ... estou mandando fuzilar todos os antissemitas”) e para Jacob Burckhardt (assinando “Dioniso”). Burckhardt
entendeu o que acontecia e passou o cartão a um dos admiradores mais próximos de Nietzsche, que foi imediatamente recolhê-lo.

Nietzsche estava então clinicamente louco e jamais se recuperaria. Quase com certeza sua doença teria sido incurável mesmo hoje. Foi provocada por excesso de trabalho, solidão e sofrimento – mas a causa principal foi sífilis, já em estágio terciário, que aparentemente acarreta “paralisia mental”. Após curto período em um asilo, Nietzsche foi liberado e entregue aos cuidados da mãe. Era inofensivo agora, boa parte do tempo em estado catatônico, que o reduzia à condição quase vegetal. Em seus momentos mais lúcidos, parecia ter vaga ideia de sua vida passada. Quando lhe davam um livro, observava: “Não escrevi eu também bons livros?”

Após a morte da mãe, em 1897, foi cuidado por sua irmã Elizabeth Förster-Nietzsche. Era a última pessoa que deveria ter sido encarregada dessa tarefa. Irmã mais nova de Nietzsche, Elizabeth era casada com Bernard Förster, professor fracassado que se tornara notório antissemita. Nietzsche o desprezava tanto como homem quanto por suas ideias. Förster tinha organizado uma colônia da raça ariana chamada Nueva Germania, no Paraguai, utilizando pequenos fazendeiros pobres da Saxônia (Os remanescentes da Nueva Germania ainda existem no Paraguai, onde a “raça superior” vive hoje em geral nas mesmas condições dos índios locais, virtualmente sem distinção, exceto pelos cabelos louros.)

Ao voltar à Alemanha para cuidar do irmão louco, Elizabeth decidiu transformá-lo numa grande figura. Levou-o para Weimar, por conta de suas elevadas associações culturais com Goethe e Schiller, a fim de organizar um arquivo Nietzsche. Em seguida, começou a adulterar as anotações inéditas do irmão, inserindo nelas ideias antissemitas e observações elogiosas sobre si própria. Essas anotações foram publicadas com o título de Vontade de potência, texto desde então depurado de todo esse lixo pelo grande especialista nietzschiano Walter Kaufmann, para chegar ao que é incontestavelmente a maior obra de Nietzsche.

Ele começa por declarar a condição da era vindoura: “O ceticismo acerca da moralidade é decisivo. O fim da interpretação moral do mundo, não mais sancionada depois de ter tentado escapar para além do limite metafísico, conduz ao niilismo. ‘Tudo carece de sentido’ (a impossibilidade de defesa da interpretação ‘cristã’ do mundo, na qual se investiu enorme parcela de energia, desperta a suspeita de que todas as interpretações do mundo são falsas).”

Isso parece tornar a filosofia como um todo supérflua, mas Nietzsche continua, agora de maneira divertida: “Todo o aparato do conhecimento é um aparato de abstração e simplificação – direcionado não ao conhecimento, mas à posse das coisas: ‘fim’ e ‘meios’ estão tão distantes de sua natureza essencial como estão os ‘conceitos’.” Prossegue definindo nosso conhecimento: “Todos os nossos órgãos do conhecimento e nossos sentidos são desenvolvidos tão-somente como meios de preservação e crescimento.

A confiança na razão e em suas categorias, na dialética, a valorização da lógica, portanto, somente comprova sua utilidade para a vida, comprovada pela experiência – não que alguma coisa seja verdadeira.” Suas observações psicológicas permanecem perspicazes como sempre, só que agora conduzem de aperçus a intuições fundamentais (e perigosas). “O prazer surge quando há o sentimento de potência.

A felicidade repousa na consciência triunfante de potência e vitória. O progresso se baseia no fortalecimento da espécie, na aptidão para o uso enérgico da vontade. Todo o resto é um perigoso mal-entendido.” Nietzsche finalmente chegou ao século XX, cuja natureza ele previra tão bem. Pequena e patética figura pálida com enorme bigode militar, com pouca ou nenhuma ideia de quem era ou de onde estava, terminou morrendo a 25 de agosto de 1900. Nesse momento, suas obras começavam a conquistar a aclamação que aguardara por toda a sua vida, e sua fama rapidamente se difundiu.

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