sábado, 14 de julho de 2018

Nietzsche VIDA E OBRA - PARTE 3

Dois anos mais tarde Nietzsche publicou a coletânea de aforismos Humano, demasiado humano, o que consumou sua ruptura com Wagner. O elogio da arte francesa, a acuidade psicológica e o esvaziamento das pretensões românticas, além da aguda percepção, foram excessivos para Wagner. E, para culminar, a obra não continha nenhuma referência elogiosa à “música do futuro”.

Talvez ainda mais importante, essa obra também conseguiu afastar alguns dos mais genuínos admiradores filosóficos de Nietzsche. Ironicamente, a causa disso foi a razão pela qual ele é hoje admirado em todo o universo (mesmo por aqueles que abominam sua filosofia). Nessa obra, Nietzsche começou a desenvolver o estilo que lhe permitiu tornar-se um mestre na língua alemã. (Não se trata de tarefa pequena com um idioma como o alemão – que derrotou até mesmo alguns de seus mais conceituados escritores.) O estilo de Nietzsche fora sempre claro e combativo, suas ideias condensadas, mas ainda assim imediatamente compreensíveis.

Decidiu, no entanto, começar a escrever sob a forma de aforismos. Ao invés de usar argumentos longos e tortuosos, preferiu apresentar suas ideias numa série de intuições penetrantes, passando rapidamente de um tópico a outro. Nietzsche filosofava movimentando-se de várias maneiras. Suas melhores ideias ocorreram enquanto fazia longas caminhadas pelas regiões campestres da Suíça.

Frequentemente afirmava ter caminhado por mais de três horas, a despeito de sua saúde frágil (Embora isso pudesse muito bem ser antes uma projeção da vontade de potência que manifestação real dela.) Chegou-se mesmo a dizer que o estilo aforismático de Nietzsche era consequência de seu hábito de fazer pausas para anotar seus pensamentos enquanto caminhava. Seja qual for a causa, esse hábito aforismático de Nietzsche resultaria em estilo sem paralelo por toda a Europa durante o século XIX.

Eis uma pretensão ponderável (embora Nietzsche certamente concordasse com ela). O século XIX foi um período de grandes estilistas. Mas, exceção feita ao enfant terrible Rimbaud, nenhum outro escritor pressentiu a revolução linguística que estava por vir. Revolução de teor mais que de estilo. Na prosa de Nietzsche pode-se ouvir a voz próxima do século XX: ou seja, a língua do futuro.

Mas tudo isso não aconteceu de repente. Quando Nietzsche escreveu Humano, demasiado humano ele apenas começava a encontrar sua voz. Mesmo suas ideias ainda tinham, em muitos casos, de encontrar sua marca. Essa obra é rica em aperçus psicológicos. “O fantasista nega a realidade para si mesmo, o mentiroso só o faz para outros.” “A mãe do excesso não é a alegria, mas a falta dela.” “Todos os poetas e escritores enamorados do superlativo desejam fazer mais do que podem.” “Um dito espirituoso é um epigrama sobre a morte de um sentimento.” Mas, no final, tudo se torna excessivo.

Seus admiradores achavam que o que ele fazia não era filosofia e estavam certos. Tratava-se de psicologia, e de tal qualidade que algumas décadas mais tarde Freud decidiu não continuar a ler Nietzsche – receando descobrir não houvesse mais nada a dizer sobre o assunto. Mas a mistura de aforismos e psicologia não constrói uma obra extensa e coerente. Por trás dos aperçus psicológicos havia uma linha de argumentação muito tênue conectando os aforismos, o que fez com que sua obra fosse classificada como assistemática.

A obra de Nietzsche jamais perderia esse rótulo – o que é injusto. Por seu estilo aforismático, ela pode parecer assistemática, mas suas ideias são tão coerentes e tão bem fundamentadas quanto as que se encontram confinadas dentro de qualquer dos grandes sistemas filosóficos. No entanto, é óbvio que ele era assistemático. A filosofia de Nietzsche antecipava o fim de todos os sistemas. Ou deveria tê-lo feito – mas há sempre alguém querendo tentar. (Precisamente nessa época Karl Marx trabalhava com afinco no Museu Britânico – a apenas algumas cadeiras de onde me sento agora.)

A despeito dessas falhas, Humano, demasiado humano marca o despontar de Nietzsche como o melhor psicólogo de seu tempo – enorme façanha, caso se considere sua inexperiência social. Nietzsche era em essência um pássaro solitário. No sentido em geral aceito, ele mal conhecia alguém. Não tinha amigos verdadeiros. Por toda a sua vida manteve poucos admiradores próximos, mas sua auto-obsessão o impedia de dedicar-se ao dar e receber que caracterizam a verdadeira amizade. Como adquiriu então conhecimento psicológico tão profundo? Muitos comentadores opinam que sua fonte nessa esfera foi apenas um homem – Richard Wagner, o que é bem possível, uma vez que nele havia rica concentração de enigmas psicológicos a serem decifrados. Embora esses mesmos comentadores tendam a menosprezar o fato de que Nietzsche também se conhecia muito bem (ainda que de forma intermitente e às vezes um pouco seletiva).

As instrospecções psicológicas de Nietzsche são de aplicação universal, apesar de suas origens ecléticas – um filósofo misantropo e um compositor megalomaníaco. No entanto, o acesso de Nietzsche à sua principal fonte psicológica estava chegando ao fim. Após a publicação de Humano, demasiado humano, a ruptura com Wagner tornara-se inevitável. O mundo para o qual Nietzsche se preparava com essa obra era o Admirável Mundo Novo do futuro – um mundo no qual Bem e Mal não existiam mais sob qualquer forma de transcendência, um mundo sem valores absolutos ou sanções divinas.

Partindo para o ataque, Nietzsche expusera as motivações subconscientes do cristianismo, a “moral de escravo” que tentava emascular a vontade de potência. Wagner, nesse meio tempo, estava engajado em seu último trabalho, Parsifal, que marcou o fim de seu envolvimento com Schopenhauer e seu retorno ao abrigo do cristianismo. Seus caminhos se bifurcaram para sempre.

Em 1879 Nietzsche foi obrigado a demitir-se de seu cargo em Basileia em virtude de enfermidades contínuas. Por anos sua saúde fora frágil e, nesse momento, era um homem muito doente. Concederam-lhe pequena pensão e aconselharam-no a fixar residência em local de clima mais ameno. Nos dez anos seguintes, perambulou pela Itália, pelo sul da França e pela Suíça, sempre procurando um clima que aliviasse seu mal-estar.

O que havia de errado com ele? Quase tudo, aparentemente. Sua visão definhara a tal ponto que estava meio cego (o médico o aconselhara a deixar de ler, o que para ele equivalia a deixar de respirar). Sofria de violentas dores de cabeça que o incapacitavam, confinando-o ao leito por dias, e em geral era um poço de indisposições físicas e reclamações.

A coleção de medicamentos, elixires, pílulas, tônicos, pós e poções que mantinha sobre a mesa colocam-no em posição única, mesmo entre os grandes filósofos hipocondríacos. E no entanto esse foi o homem que concebeu a ideia de super-homem. O elemento de compensação psicológica presente nessa ideia não deve afastá-la do lugar central que ocupa entre outras ideias suas mais aceitáveis.


O super-homem fez sua aparição em Assim falou Zaratustra, longo poema “ditirâmbico”, de gravidade e exacerbação quase insuportáveis, cuja extrema falta de humor não é amenizada pelas tentativas de “ironia” e “leveza” de chumbo do autor. Como Dostoievski e Hesse, não é legível senão para os adolescentes – embora a experiência de tal obra nessa idade com frequência possa “mudar sua vida”.

E nem sempre para pior. As ideias tolas são facilmente identificáveis e o restante é um antídoto que desafia muitas noções aceitas, exigindo de cada um reflexão profunda e solitária. A filosofia, como tal, é quase negligenciável. Mas as exortações à filosofia – pensar por si mesmo – são poderosas, tanto quanto as caracterizações de nossa condição. “Existe ainda algo como em cima e em baixo?

Não estaremos à deriva através do nada infinito? ... Não estará a noite com certeza sempre mais profunda se fechando em torno de nós? Não necessitaremos lanternas pela manhã? Estamos ainda surdos ao rumor dos coveiros cavando o túmulo de Deus? Não sentimos o mau cheiro da putrefação divina? ...

A coisa mais santa e poderosa do mundo sangrou até a morte sob as nossas facas ... Proeza maior jamais foi realizada e, graças a ela, qualquer um que venha depois de nós viverá uma história maior que qualquer outra vivida antes.” Quase um século depois, os existencialistas franceses começaram a expressar esses pensamentos – em termos menos bombásticos – e foram saudados como a vanguarda do pensamento moderno.

Em suas intermináveis viagens por spas e balneários de clima ameno, Nietzsche foi apresentado por seu admirador Paul Rée a uma mulher russa de vinte e um anos chamada Lou Salomé. Rée e Nietzsche (separadamente e juntos) costumavam levá-la para longos passeios e tentavam encher a cabeça de Lou com suas ideias sobre filosofia. (Zaratustra foi apresentado a Lou como “o filho que nunca terei” – o que foi muito auspicioso para o jovem Zaratustra, não apenas pela atenção que seu nome pudesse ter atraído no recreio da escola.) Lou, Nietzsche e Rée envolveram-se então num esquema triangular inconcebível para uma época em que ninguém tinha um pingo de savoir-faire quanto a sexo.

De início os três declararam que todos estudariam filosofia e viveriam juntos num ménage à trois platônico. Depois, Rée e Nietzsche (separadamente) declararam-se apaixonados por Lou e decidiram propor-lhe casamento. Infelizmente, Nietzsche cometeu o ridículo erro de pedir a Rée que transmitisse a proposta a Lou em seu nome. (Isso não invalida a reivindicação de Nietzsche de ter sido o maior psicólogo de seu tempo.)

A melhor demonstração sobre quem estava de fato no controle dessa situação é oferecida por uma fotografia dos três, tirada num estúdio em Lucerna. Os dois virgens emocionais (com trinta e oito e trinta e três anos) estão atrelados a uma carroça, na qual se senta a verdadeira virgem de vinte e um anos, brandindo um chicote.

Finalmente, os três acharam-se incapazes de sustentar a grande farsa por mais tempo e se separaram. Nietzsche ficou tão desvairado que escreveu: “Esta noite tomarei ópio suficiente para enlouquecer.” Mas por fim decidiu que Lou não merecia ser a mãe ou a irmã do jovem Zaratustra. (Lou chegou a ser uma das mulheres mais notáveis de sua época. Após incorporar o sobrenome Andreas-Salomé de seu marido de estimação (um professor alemão), exerceria profunda influência sobre duas outras figuras de destaque naquele momento: mantendo um caso com o grande poeta lírico alemão Rilke e desenvolvendo amizade íntima com o já idoso Freud.)

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