sábado, 14 de julho de 2018

Nietzsche VIDA E OBRA - PARTE 2

Infelizmente, só temos o depoimento de Nietzsche a respeito desse episódio improvável. Se a visita foi ou não tão acidental ou se ele terminou acariciando apenas as teclas do piano ou não, é impossível dizer. A essa altura ele era, quase sem sombra de dúvida, virgem. Era um jovem extremamente impetuoso, tanto quanto inexperiente e gauche no que dizia respeito a assuntos mundanos. (Embora isso não o tenha impedido de fazer pronunciamentos a esse respeito.

Apesar de sua condição sexual, informou compenetradamente a um amigo que necessitava de três mulheres para satisfazê-lo.) A despeito de tudo isso, tendo a crer na versão de Nietzsche sobre o incidente em Colônia. Em reflexão posterior, porém, Nietzsche deve ter decidido que fora atraído por algo mais que o piano. Voltou ao bordel e quase com certeza visitou alguns estabelecimentos semelhantes quando retornou a Leipzig. Não muito tempo depois, descobriu que estava infectado. O médico que o tratou não lhe teria dito que tinha sífilis (não o faziam naquela época porque era incurável, assim como hoje mentem com arrogância em relação ao câncer).

Ainda assim, em consequência desse incidente, Nietzsche parece ter-se em geral abstido de atividades sexuais com mulheres. Mesmo assim, continuou ao longo de sua vida a fazer observações autorreveladoras e embaraçosas sobre elas em sua filosofia. “Vai ver uma mulher? Não esqueça de levar o chicote.” O segundo incidente determinante em sua vida aconteceu quando ele entrou num sebo e se deparou com um exemplar de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer.

“Tomei o livro estranho em minhas mãos e comecei a folhear as páginas. Não sei que demônio sussurrou ao meu ouvido: ‘Leve esse livro para casa.’ Assim, quebrando meu princípio de jamais comprar um livro precipitadamente, levei-o. Ao chegar em casa, atirei-me no canto do sofá com meu novo tesouro e comecei a deixar que aquele gênio dinâmico e melancólico trabalhasse minha mente ... Descobri-me olhando para um espelho que refletia o mundo, a vida e minha própria natureza com aterradora grandeza ... aqui eu vi doença e saúde, exílio e refúgio, Inferno e Paraíso.”

Em consequência desses assombrosos sentimentos proféticos, Nietzsche tornou-se um schopenhaueriano. Nessa ocasião, quando não tinha nada em que acreditar, necessitava do pessimismo e do distanciamento de Schopenhauer, que sustentava ser o mundo mera representação, amparado por uma vontade maléfica que a tudo perpassa. Essa vontade é cega e não atenta para as preocupações da humanidade comum, infligindo a seus membros uma vida de sofrimento, enquanto lutam contra sua manifestação em torno deles (o mundo). A única conduta sensata que nos resta consiste em diminuir o poder da vontade dentro de nós mediante uma vida de renúncia e ascetismo.

O pessimismo de Schopenhauer não se adequava totalmente à natureza de Nietzsche, mas ele reconheceu de imediato sua honestidade e sua força. A partir de então, suas ideias positivas teriam de ser primeiro fortes o bastante para ir além desse pessimismo. Mas, acima de tudo, o conceito de Schopenhauer sobre o papel fundamental desempenhado pela vontade se mostraria decisivo e se transformaria finalmente na vontade de potência de Nietzsche.

Em 1867 Nietzsche foi convocado para um ano de serviço no exército prussiano. As autoridades foram obviamente iludidas pelo enorme e feroz bigode militar que Nietzsche passara a cultivar sob a decepcionante cicatriz provocada pelo duelo, e ele foi enviado para a cavalaria. Foi um erro. Nietzsche tinha grande determinação, mas um físico lamentavelmente frágil. Sofreu sério acidente enquanto cavalgava e continuou sobre o cavalo como se nada tivesse acontecido, na melhor tradição prussiana. Quando o soldado Nietzsche voltou à caserna, teve de ser hospitalizado por um mês. Foi promovido a cabo por bravura e mandado de volta para casa.

De volta à Universidade de Leipzig, foi então reconhecido por seu professor como o melhor aluno que tivera em quarenta anos. Contudo, Nietzsche começava a perder o encanto pela filologia e sua “indiferença em relação aos verdadeiros e prementes problemas da vida”. Não sabia o que fazer. Desesperado, pensou em estudar química ou ir para Paris por um ano para experimentar “o divino cancã e o o veneno amarelo, o absinto”. Até que um dia conseguiu ser apresentado ao compositor Richard Wagner, que se encontrava em visita secreta à cidade. (Wagner fora expulso por atividades revolucionárias vinte anos antes; e o banimento persistia, apesar da transformação de suas posições políticas extremistas da esquerda para a direita.)

Wagner nascera no mesmo ano do pai de Nietzsche e, segundo os registros da época, guardava com ele impressionante semelhança. Nietzsche tinha grande – mas amplamente inconsciente – necessidade da figura paterna. Jamais conhecera antes um artista famoso nem alguém cujas ideias fossem aparentemente tão semelhantes às suas. Durante seu breve encontro, Nietzsche descobriu o profundo amor de Wagner por Schopenhauer. Wagner, lisonjeado pelas atenções do jovem e brilhante filósofo, devolveu-lhe a cortesia com o máximo de seu notável charme. O efeito sobre Nietzsche foi imediato e profundo: Nietzsche foi sufocado pelo grande compositor, cujo caráter exuberante era pelo menos igual ao de suas exuberantes óperas.

Dois meses mais tarde ofereceram a Nietzsche o cargo de professor de filologia na Universidade de Basileia, na Suíça. Ele tinha então apenas vinte e quatro anos e ainda não obtivera o doutorado. Apesar de suas dúvidas em relação à filologia, era uma oferta que não podia recusar. Em abril de 1869 tomou posse do cargo em Basileia e imediatamente começou a dar aulas extras na área de filosofia. Desejava combinar filosofia e filologia, o estudo de estética e dos clássicos – moldando nada menos que um instrumento de análise dos erros da nossa civilização. Rapidamente firmou-se como o jovem astro em ascensão da universidade e estabeleceu relações com Jacob Burckhardt, o grande historiador da cultura que também fazia parte do quadro acadêmico da universidade.

Burckhardt, o primeiro a elaborar o conceito histórico de Renascimento, era o único espírito do mesmo calibre de Nietzsche no corpo docente, e talvez a única figura que Nietzsche continuaria a reverenciar até o fim de sua vida. É possível que Burckhardt tivesse, nessa etapa crucial, exercido forte influência sobre Nietzsche, mas sua reserva aristocrática impedia que isso acontecesse. E, além disso, o papel da figura paterna já fora ocupado – por uma influência longe de ser forte. Em Basileia, Nietzsche estava a apenas trinta quilômetros de Tribschen, onde Wagner estabelecera residência com Cosima, filha de Liszt (nessa época ainda casada com um amigo mútuo de Liszt e Wagner, o regente von Bülow).

Imediatamente Nietzsche tornou-se, nos fins de semana, visita regular na suntuosa villa de Wagner, às margens do lago Lucerna. Mas a vida do compositor era operística não apenas em termos musicais, emocionais e políticos. Ele era um homem que acreditava em viver ao máximo suas fantasias. Tribschen era ela própria como uma ópera, e não havia jamais qualquer dúvida a respeito de quem desempenhava o papel principal. Vestido “ao estilo flamengo” (mistura do Holandês Voador com Rubens em roupas extravagantes), Wagner caminhava a passos largos entre paredes em cetim cor-de-rosa com querubins rococó, em calças de cetim negro até os joelhos, boina escocesa e gravata de seda com nó escandaloso – declamando em meio a bustos de si próprio, imensas pinturas a óleo (com o mesmo tema) e salvas de prata comemorativas de encenações de suas óperas.

Pairava incenso no ar e apenas à música do maestro era permitido competir com ele. Enquanto isso, Cosima colaborava na encenação do companheiro, certificando-se de que ninguém escapava carregando os perfumados cordeiros de estimação, os enormes cães de caça engalanados ou as aves ornamentais que perambulavam pelo jardim. É difícil entender como Nietzsche se deixou levar por tudo isso. Na realidade, é difícil entender que alguém se deixe levar por isso. (As extravagâncias de Wagner o deixavam constantemente arruinado e ele confiava no apoio de uma série de benfeitores ricos, inclusive o rei Ludwig da Baviera, que fez enormes contribuições com dinheiro do erário público.)

Somente quando se ouve a música de Wagner se pode conceber a profunda persuasão e a sedução fatal de seu caráter. O próprio Wagner era evidentemente tão excessivo quanto suas fascinantes composições. O imaturo Nietzsche logo se deixou enfeitiçar por essa atmosfera vertiginosa, onde os leitmotivs de fantasia inconsciente flutuavam pelos salões em estilo rococó. Wagner pode ter sido uma figura paterna – mas Nietzsche logo descobriu que sentia um desejo edipiano por Cosima, sem ousar declarar (nem a si próprio) que se apaixonara por ela.

Em julho de 1870, eclodiu a guerra franco-prussiana. Era a chance de a Prússia vingar-se da derrota imposta por Napoleão, conquistar os franceses e firmar a Alemanha como a maior potência da Europa. Cheio de fervor patriótico, Nietzsche se apresentou como enfermeiro voluntário. Passando por Frankfurt a caminho da linha de frente, viu as tropas da cavalaria ressoando os cascos pelas ruas em pleno esplendor. Foi como se uma venda caísse de seus olhos. “Senti pela primeira vez que a mais forte e mais elevada vontade de viver não se encontra na luta pela vida, mas numa vontade de potência, numa vontade de guerra e dominação.” Nascera a vontade de potência e, embora ainda fosse passar por modificações consideráveis, até ser vista mais em termos psicológicos e sociais do que militares, jamais se livraria totalmente de sua inspiração militar inicial.

Nesse ínterim, Bismarck esmagou os franceses e Nietzsche começou a descobrir que a guerra não era feita apenas de glória. No campo de batalha em Wörth, viu-se no meio de restos humanos “salpicados por todos os lados, exalando um penetrante cheiro pútrido de cadáveres”. Mais tarde, foi colocado num vagão de gado para conduzir seis feridos numa viagem que durou mais de dois dias. Entrincheirado entre ossos quebrados, carne gangrenada e soldados moribundos, Nietzsche, de forma varonil, fez o melhor que pôde – mas na chegada a Karlsruhe ele próprio era um homem destruído.

Foi levado para o hospital com desinteria e difteria. Apesar dessa traumática experiência, em dois meses Nietzsche estava de volta a Basileia, lecionando. Continuou a se sobrecarregar com aulas de filosofia, assim como de filologia, e começou a escrever O nascimento da tragédia.



Essa brilhante e originalíssima análise da cultura grega coloca em contraste o claro elemento apolíneo de sobriedade clássica e as forças dionisíacas, mais sombrias e instintivas. Segundo Nietzsche, a grande arte da tragédia grega resultou da fusão desses dois elementos, sendo finalmente destruída pelo racionalismo superficial de Sócrates. Foi a primeira vez que se enfatizou o elemento sombrio da cultura grega, e sua caracterização por Nietzsche como fundamental provocou grande controvérsia. No século XIX o mundo clássico era sagrado.

Seus ideais de justiça, cultura e democracia favoreciam a imagem que a classe média emergente fazia de si mesma. Ninguém queria ouvir que havia sido um grande erro. Ainda mais controverso foi o uso frequente de Wagner e sua “música do futuro”, por parte de Nietzsche, para ilustrar seus argumentos filosóficos. De fato, escreveu a seu editor: “O verdadeiro objetivo [deste livro] é iluminar Richard Wagner, esse extraordinário enigma de nosso tempo, em sua relação com a tragédia grega.” Somente Wagner conseguia harmonizar os elementos apolíneo e dionisíaco à maneira da tragédia grega.

Essa ênfase no elemento dionisíaco pleno de potência se firmaria como parte essencial da última filosofia de Nietzsche. Ele já não podia tolerar a “negação budista da vontade”, pregada por Schopenhauer. Ao invés disso, opôs o elemento dionisíaco aos elementos cristãos, que considerava terem enfraquecido a civilização. Ele compreendeu que a maioria de nossos impulsos tem dois lados.

Mesmo os assim chamados melhores impulsos têm seu lado sombrio ou degenerado: “Todo ideal pressupõe amor e ódio, reverência e desprezo. O impulso essencial pode surgir tanto do lado positivo quanto do negativo.” Em sua opinião, o cristianismo começara pelo lado negativo, firmando-se no Império Romano como a religião dos oprimidos e dos escravos. Isso em geral se manifestou em sua atitude com relação à vida. Tentou constantemente superar nossos instintos positivos mais poderosos. Essa negação era tanto consciente (na união do ascetismo com a autonegação) quanto inconsciente (com relação à humildade, que ele via como uma expressão inconsciente de ressentimento, uma inversão da agressão por parte dos fracos).

Da mesma forma, Nietzsche atacou a compaixão, a repressão dos verdadeiros sentimentos e a sublimação do desejo implícitos no cristianismo – em prol de uma ética mais forte e mais próxima das origens instintivas de nossos sentimentos. Deus estava morto, a era cristã terminara. No que exibiu de pior, o século XX provou que estava certo. No que teve de melhor, mostrou que muitos dos melhores elementos “cristãos” não dependem da crença em Deus. Se continuamos ou não a viver mais coerentes com nossos sentimentos básicos, ainda é discutível.

Wagner era um artista supremo, mas não estava preparado para reflexões filosóficas dessa dimensão. Pouco a pouco Nietzsche começou a enxergar o que se escondia por trás da máscara intelectual do compositor. Wagner era um ego ambulante, de grande porte e força intuitiva – mas mesmo seu amor por Schopenhauer era passageiro, apenas mais água para o seu próprio moinho. Antes Nietzsche procurara ignorar determinados elementos mais sórdidos do caráter de Wagner, como seu antissemitismo, sua exagerada arrogância e sua relutância em reconhecer a capacidade ou as necessidades de qualquer pessoa que não fosse ele próprio.

Mas havia limites. Por essa época Wagner tinha-se mudado para Bayreuth, onde o rei Ludwig da Baviera construía para ele um teatro, que seria destinado exclusivamente à encenação de suas óperas (projeto que contribuiria para a falência das finanças da Baviera e para a deposição de Ludwig). Em 1876 Nietzsche chegou a Bayreuth para a récita de abertura do ciclo dos Anéis de Wagner, mas adoeceu, quase com certeza de causas psicossomáticas. A megalomania e a célere decadência da arte haviam se tornado demasiado para o discípulo favorito do maestro e Nietzsche teve de partir.

CONTINUAÇÃO...

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