sexta-feira, 13 de julho de 2018

Nietzsche Introdução

INTRODUÇÃO

No início da era cristã, a filosofia adormeceu. Seus cochilos acabaram por produzir o sonho filosófico conhecido como escolástica, que tinha por base Aristóteles e os ensinamentos da Igreja.

A filosofia foi rudemente despertada desses devaneios medievais no século XVII pela chegada de Descartes, com a sua declaração Cogito, ergo sum (Penso, logo existo). Uma era de esclarecimento havia começado: o conhecimento baseava-se na razão. Mas Descartes despertou mais do que os sonolentos eruditos. Também acordou os britânicos, que logo responderam à sua asserção racional, insistindo em que nosso conhecimento não se baseia na razão, mas na experiência.

No seu entusiasmo, os empiristas britânicos logo destruíram todo traço de razão – reduzindo a filosofia a uma série de sensações cada vez menores. A filosofia corria o risco de adormecer mais uma vez. Foi então que, em meados do século XVIII, Kant despertou de seu sono dogmático e formulou um sistema filosófico ainda maior do que o que condenara a filosofia à inércia durante a Idade Média. Parecia que a filosofia estava prestes a de novo emular Rip van Winkle.

Hegel reagiu a essa situação soporífera construindo para si mesmo um enorme leito sistemático de quatro colunas. Schopenhauer decidiu tentar outro método e jogou um jato da fria filosofia oriental no leito kantiano. Isso provocou o despertar do jovem Nietzsche, que se lançou na rajada fria e passou a proclamar uma ruidosa filosofia, que manteria a humanidade acordada por muito tempo.



VIDA E OBRA - PARTE 1


Com Nietzsche a filosofia passou a ser novamente perigosa, dessa vez com uma diferença. Nos séculos anteriores a filosofia fora perigosa para os filósofos; com Nietzsche, torna-se perigosa para todos. Nietzsche terminou louco, o que começou a transparecer no tom de seus últimos escritos. Suas ideias perigosas, porém, começaram a surgir muito antes de ele enlouquecer e nada têm a ver com insanidade mental clínica. Elas eram o presságio de uma loucura coletiva que teria terríveis consequências na Europa durante a primeira metade do século XX e que agora mostra sintomas nefastos de recidiva nos Bálcãs e na Europa oriental.

As melhores ideias filosóficas de Nietzsche mal são dignas desse nome – esteja ele falando do super-homem, do eterno retorno (a ideia de que vivemos várias vidas através da eternidade) ou do único objetivo da civilização (produzir “grandes homens”, como Goethe, Napoleão e ele próprio). A utilização que ele faz da vontade de potência como uma explicação universal é ou simplista ou sem sentido – até mesmo o monismo de Freud é mais sutil e o conceito menos específico de Schopenhauer sobre a vontade universal é mais convincente. Como qualquer boa teoria ardilosa, a insinuante doutrina da vontade de potência contém o habitual elemento de paranoia. Mas o verdadeiro filosofar de Nietzsche é tão brilhante, persuasivo e incisivo quanto qualquer outro antes ou depois dele.

Quando se lê Nietzsche, tem-se a sensação embriagadora de que a filosofia de fato tem importância (uma das razões por que ele é tão perigoso). A utilização da vontade de potência como mero instrumento analítico possibilitou-lhe a descoberta de elementos constitutivos das motivações humanas de que poucos tinham suspeitado antes. Isso permitiu-lhe desmascarar valores oriundos dessas motivações e traçar seu desenvolvimento sobre um quadro histórico amplo, iluminando os próprios alicerces da nossa civilização e da nossa cultura.

Embora Nietzsche não seja totalmente isento de culpa pelos perigosos disparates proferidos em seu nome, deve-se frisar que a maior parte deles não passa de conceitos travestidos do que ele de fato escreveu. Ele nada sentia além de desprezo pelos protofascistas de seu tempo, os antissemitas o repugnavam e a ideia de uma nação de alemães de raça pura como raça superior teria decerto exercitado ao máximo seu senso de humor. Tivesse ele vivido (e mantido sua sanidade mental) até a década de trinta, quando estaria apenas na casa dos oitenta, Nietzsche não teria certamente permanecido em silêncio a respeito dos grotescos acontecimentos que se desenrolavam em seu país –como fizeram alguns filósofos alemães da época, que se proclamavam seus sucessores.

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844 na Saxônia, então província do cada vez mais poderoso império da Prússia. Nietzsche descendia de longa linhagem de comerciantes, inclusive chapeleiros e açougueiros, mas seu pai e seu avô eram ambos pastores luteranos. Seu pai era um prussiano patriota que tinha o rei, Frederico Guilherme IV, em alta estima. Quando o primeiro filho de Ludwig Nietzsche nasceu, no dia do aniversário do rei, era óbvio que viria a se chamar Friedrich. Por coincidência extrema e sem sentido, os três morreriam loucos.

O primeiro a partir foi Ludwig, falecido em 1849. O diagnóstico foi “amolecimento do cérebro” – e a autópsia aparentemente revelava que um quarto de seu cérebro fora afetado pelo “amolecimento”. Esse diagnóstico saiu de moda entre os profissionais médicos, porém renomados biógrafos de Nietzsche estão convencidos de que a insanidade de Ludwig Nietzsche não foi herdada pelo filho.

Nietzsche foi educado em Naumburg numa casa cheia de “mulheres santas” – que incluíam a mãe, uma irmã mais nova, uma avó materna e duas tias solteiras ligeiramente perturbadas. Isso parece ter influenciado a atitude de Nietzsche em relação a mulheres mais velhas que se enquadrassem na mesma categoria de suas tias solteiras. Aos treze anos foi para um internato na vizinha Pforta – um estabelecimento de prestígio, equivalente à melhor escola pública inglesa da época, onde recebeu boa educação aliada às barbaridades costumeiras. Nietzsche, produto genuíno de uma criação beata e mimada, tornou-se conhecido como “pastorzinho” e teve excelente desempenho. Mas era tão brilhante que não conseguiu evitar pensar por si mesmo.

Por volta dos dezoito anos começou a colocar em dúvida sua fé. O pensador de visão clara não podia deixar de notar que começava a se sentir deslocado no mundo em que vivia. Como de hábito, essa reflexão parece ter ocorrido em total isolamento. O pensamento de Nietzsche, por toda a sua vida, seria influenciado por poucas pessoas vivas (e não muitos mortos).

Aos dezenove anos foi para a Universidade de Bonn para estudar teologia e filologia clássica, com o objetivo de se tornar pastor. Seu destino havia sido traçado muito antes pelas “santas mulheres”; mas ele já experimentava um desejo inconsciente de rebelião, a que se seguiu uma transformação de seu caráter. Ao chegar à universidade, o aluno solitário inesperadamente tornou-se um típico estudante gregário. Aderiu a uma congregação influente, passou a sair para beber com outros rapazes e, à maneira verdadeiramente teutônica, chegou a bater-se em duelo, na forma habitualmente artificial, interrompido tão logo recebeu a cicatriz da honra – um ligeiro corte no nariz, mais tarde infelizmente ocultado pela armação dos óculos.

Era apenas uma fase obrigatória. Nesse momento, Nietzsche decidira que “Deus está morto”. (Essa observação, hoje tão estreitamente associada a Nietzsche e à sua filosofia, também fora feita por Hegel cerca de vinte anos antes do nascimento de Nietzsche.) Em casa, nas férias, recusou-se a receber a comunhão e anunciou que não seguiria os passos do pai tornando-se pastor. No ano seguinte decidiu transferir-se para a Universidade de Leipzig, onde iria desistir da teologia e concentrar-se em filologia clássica. Nietzsche chegou a Leipzig em outubro de 1865, no mesmo mês em que completava seu vigésimo primeiro aniversário. Ocorreram então dois fatos que transformariam sua vida.

Numa viagem de turismo a Colônia, visitou um bordel, inadvertidamente segundo confessou. Na chegada, pedira a um carregador que o levasse a um restaurante, mas o carregador levou-o a um bordel. Como o próprio Nietzsche relatou mais tarde a um amigo: “De repente me encontrei cercado por meia dúzia de visões vestidas em lantejoulas e gaze, olhando-me fixamente e cheias de expectativa. Por um instante, fiquei sem fala. Depois me dirigi instintivamente para a única coisa que naquele lugar tinha alma: o piano. Toquei alguns acordes, que me livraram de minha paralisia, e fugi.”

CONTINUAÇÃO...

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